7.6.15
A pesada herança de Salazar
Algumas pessoas descobriram agora que uma campanha eleitoral decente exigia que se fizesse a história não só do governo de Sócrates mas também do governo de Passos Coelho. Infelizmente, ninguém se lembrou ainda que a mais leve compreensão da “crise” tem de começar muito antes na “pesada herança” (verdadeiramente pesada) que nos legou Salazar. Além de uma guerra colonial em Angola, Moçambique e Guiné e de um exército monstruoso, tecnicamente atrasado, a sociedade que Salazar nos legou (fora meia dúzia de enclaves em Lisboa e no Porto) era uma sociedade arcaica. De resto, para a esmagadora maioria da população, não havia nada: não havia saneamento básico ou água corrente; não havia electricidade; não havia hospitais nem centros de saúde; não havia uma rede escolar decente; não havia qualquer espécie de segurança social; não havia estradas; não havia transportes; e, tirando a PIDE e a GNR, não havia polícia.
Um milhão de portugueses vivia e trabalhava na Europa e a Europa acabou naturalmente por se tornar o modelo de sociedade que eles queriam ou com que sonhavam. O que implicava “desenvolver” o país, uma política maldita que Salazar sempre recusara por convicção ideológica e, a partir de 1961, por causa de África. Ora o “desenvolvimento” do país tinha de ser pago e suportado pelo Estado. O défice perene das contas portuguesas desde 1975 vem dessa necessidade imperativa. Mas, sem isso, não valia a pena pensar em democracia, como o próprio Cavaco percebeu. Claro que se cometeram erros sobre erros nessa esmagadora obra de “modernizar Portugal”; e claro que, fora a gente com competência técnica imediatamente indispensável, entrou de roldão no Estado uma turba de inúteis, que passou a comer à nossa custa.
Mas, durante quase meio século, as coisas foram andando (com um sobressalto ou outro) sem nenhum desastre de maior. Só o “fenómeno Sócrates”, que não é simplesmente um efeito do indivíduo Sócrates, conseguiu arruinar o difícil equilíbrio que até ali nos sustentara. Em 2007-8, já geralmente se sentia uma certa impaciência com a situação do país, que não crescia e, apesar de incessantes promessas, não se “modernizava”. A “poesia” da qualificação, da ciência e da cultura – historicamente um péssimo sinal – reapareceu com estrondo; e a megalomania de Sócrates, com dinheiro emprestado, tentou fabricar a aparência de um “progresso” falso, mas vistoso. A bancarrota, claro, chegou depressa. O Portugal de 2015 precisa de pagar as dívidas. Só que as dívidas não são o ponto decisivo. O ponto decisivo é meter solidamente na cabeça que o caminho para a Europa pede muito esforço, alguma pobreza e, sobretudo, muitas reformas.
Vasco Pulido Valente, no PÚBLICO
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