Presidencialismo superlativo
O sistema de governo angolano vai integrar a família dos regimes 'hiperpresidencialistas', com forte concentração de poderes
Contrariamente ao que se escreveu entre nós sobre a nova Constituição angolana, nem o Presidente da República deixou de ser eleito diretamente nem a democracia ficou defunta naquele País. Todavia, a Constituição concentra tantos poderes nas mãos do Presidente, que o regime nela estabelecido só pode qualificar-se como superpresidencialismo, com os riscos que isso comporta.
Com a esmagadora vitória eleitoral do MPLA nas eleições legislativas de 2008, que lhe conferiram a maioria necessária para rever sozinho a Constituição, ficou aberto o caminho para uma explícita opção presidencialista, que a evolução constitucional tinha preparado desde há muito, de modo a tornar o Presidente da República o titular do governo, dispensando a existência de um primeiro-ministro e descartando também a dependência política do governo perante o Parlamento, tudo em prol da estabilidade política.
Assim se fez, efetivamente. O que há de original no novo esquema constitucional não é todavia a acumulação das funções de chefia do Estado e da chefia do governo no Presidente da República nem a ausência de responsabilidade parlamentar deste (que são traços típicos do presidencialismo clássico), mas sim o facto de o Parlamento e o Presidente da República serem escolhidos na mesma eleição, sendo eleito Presidente da República o primeiro nome da lista mais votada no círculo nacional (agora criado) para a Assembleia Nacional.
De facto, nos sistemas presidencialistas, trata-se sempre de duas eleições separadas, mesmo quando são parcialmente simultâneas, como sucede nos Estados Unidos, de modo a sublinhar a separação entre o poder legislativo e o poder executivo, que está no cerne do sistema presidencialista.
No caso do novo presidencialismo angolano, optou-se por uma única eleição, pela qual os cidadãos escolhem com um único voto o Presidente da República e os deputados ao Parlamento. Está à vista o principal propósito desta solução, que visa essencialmente assegurar a unidade e estabilidade do poder político, evitando o principal problema dos regimes presidencialistas, que é a possibilidade de ocorrência de discrepância entre a base eleitoral do Presidente da República e a da maioria parlamentar. Com a eleição de ambos com uma única votação, a coincidência política entre o presidente/governo e a maioria parlamentar fica em princípio garantida, tal como sucede em regime parlamentar. O mais provável, aliás, é que na prática a dimensão presidencial das eleições prevaleça sobre a dimensão parlamentar, mediante a polarização política à volta dos candidatos presidenciais, o que favorecerá a conquista da maioria parlamentar por parte do partido ganhador da disputa presidencial. O único problema pode advir da eventualidade de nem o Presidente ter maioria absoluta nem o seu partido ter maioria parlamentar. Nessa situação, o primeiro verá a sua autoridade política diminuída e terá de encontrar compromissos a nível parlamentar para assegurar a maioria necessária para governar (orçamento, leis, etc.).
Embora inspirada no exemplo constitucional sul-africano quanto a esse aspeto, a nova Constituição angolana vai muito mais longe na concentração de poderes no Presidente da República. Além das funções de representação interna e externa, inerentes à chefia do Estado, e das funções de chefe do governo sendo os ministros seus simples colaboradores, o Presidente angolano vai ter muitos outros poderes importantes, incluindo o poder legislativo (quer em casos de urgência quer mediante delegação parlamentar - o que não é congruente com a lógica do sistema presidencialista), o poder de veto legislativo (só superável por maioria de 2/3), o poder de convocar referendos por sua iniciativa, o poder de declaração do estado de sítio por iniciativa própria (só tendo de consultar o Parlamento), etc. Acresce o poder de livre nomeação de um considerável número de cargos cimeiros da organização do Estado, a começar por vários juízes do Tribunal Constitucional (incluindo o presidente) e membros do Conselho Superior da Magistratura, os presidentes dos demais tribunais superiores, e ainda as chefias militares, o governador do Banco de Angola, entre outros. Trata-se pois de um formidável conjunto de poderes presidenciais, sem paralelo na generalidade das constituições.
De acordo com a tese oficial corrente em Angola, a nova Constituição introduz um "sistema presidencialparlamentar".
Mas o novo regime não tem, nem quer ter, nada de "parlamentar", pois o governo não deriva do Parlamento mas sim da eleição presidencial, não havendo também responsabilidade política do governo perante o Parlamento, requisito essencial do parlamentarismo.
O sistema de governo angolano vai integrar, sim, a família dos regimes "hiperpresidencialistas", com forte concentração de poderes presidenciais e sem os checks do presidencialismo norte-americano (a começar pela necessidade de confirmação parlamentar dos vastos poderes de nomeação do Presidente).
Acresce que no novo sistema angolano o Presidente, embora não possa propriamente dissolver o Parlamento, pode afinal obter o mesmo resultado, desde que ele próprio se autodemita, provocando automaticamente novas eleições parlamentarese-presidenciais. Desse modo, o Presidente possui mais um instrumento que os regimes presidencialistas ordinários não proporcionam, que é o de, se as condições políticas se conjugarem, se desfazer de um Parlamento incómodo, ou de reforçar a sua maioria parlamentar. A simples ameaça de exercer esse poder pode ser sufi ciente para vergar uma maioria reticente.
Como é evidente, o superpresidencialismo implica necessariamente uma desvalorização do Parlamento.
Resta saber se não se foi longe demais.
Vital Moreira
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