9.3.13

Mali: problema euro-africano

A Europa demorou muito tempo a compreender as convulsões que há um ano se estavam a verificar no Sara e no Sahel. Agora, a França acordou, com uma intervenção em força no Mali; mas isto é apenas o princípio do muito que resta por fazer. Jorge Heitor/revista Além Mar Perante a ambiguidade da Alemanha e de outros países, que teimam em perceber que a Argélia e o Mali são nossos vizinhos, que ficam bem mais perto de nós do que o Afeganistão, o presidente François Hollande tomou a atitude corajosa de ajudar as autoridades malianas a evitar que o fundamentalismo islâmico se apossasse de Bamaco, a capital, de onde facilmente passaria para o Senegal e a República da Guiné. Acção decisiva A França foi decisiva para a reconquista das cidades do Centro e do Norte do Mali que tinham sido ocupadas pelos islamitas, numa África Ocidental onde os jihadistas se associam por vezes aos narcotraficantes para estender um vasto manto de insegurança que vai da Mauritânia ao Níger e até mesmo à parte setentrional da Nigéria. Resta agora perceber que o que foi feito em algumas semanas terá de ser consolidado ao longo de vários anos, para que se consiga de facto reduzir de forma substancial a actividade da Al Qaeda no Magrebe Islâmico (AQMI), uma rede que a partir das fronteiras do Sara Ocidental toca em território argelino e se propaga até ao Chade, passando pelas terras dos tuaregues. Mergulhada na sua própria crise, a União Europeia não compreendeu a tempo e horas tudo o que de grave se estava a passar há 13 ou 14 meses no Norte da África e no território saheliano pelo qual ela se prolonga. Não conseguiu visualizar o que seria o risco de a Mauritânia, o Mali, o Níger, o Chade e o Sudão constituírem uma vasta zona de fundamentalismo islâmico; desde o Atlântico até ao Mar Vermelho. O objectivo bem claro da Al Qaeda é ir desde as costas da Mauritânia ao Iémen e à Somália, impondo em todas essas terras um radicalismo que não interessa nem às respectivas populações nem aos povos que vivem na Bacia do Mediterrâneo. Note.se que, nem sequer a maior parte dos muçulmanos africanos simpatizará com a jihad. Precipitações Actos algo imponderados, como o foram a dissolução das Forças Armadas do Iraque e a destruição impiedosa de tudo o que havia no sistema em vigor na Líbia, levaram nesses países à criação de situações de caos que ninguém desejará ver repetidas. Nem no Mali, nem na Argélia nem em outras partes. O risco é, recordemos, que a destruição de regimes que são maus possam gerar situações bem piores, de anarquia e de profundo radicalismo. A pressa que a França e o Reino Unido tiveram em desmantelar o sistema tutelado pelo coronel Muammar Khadafi desencadeou forças destrutivas que levaram à divisão do Mali em dois e à proclamação na metade superior do Estado de Azawad, onde os nacionalistas tuaregues acabaram por ser ultrapassados pelos fundamentalistas da AQMI, entrincheirados na fronteira com a Argélia. A actividade francesa no Mali foi um ponto de partida para que em breve forças da Comunidade Económica dos Estados da África Ocidental (CEDEAO), e porventura capacetes azuis das Nações Unidas, se instalem no terreno e evitem a concretização dos desígnios da grande Rede islamista que gostaria de apertar as suas malhas desde as areias do Sara Ocidental ao Oman e ao Afeganistão. Evitar o pior Tombuktu, Gao, Niamey, Sokoto, Kano, Zaria e Maidougari não podem passar para as mãos dos fundamentalistas islâmicos, sob pena de os países situados em redor dos Mediterrâneo se sentirem eles próprios em perigo e profundamente isolados dos que vivem para sul do Sahel, como a Serra Leoa, a Libéria, o Gana e a Costa do Marfim. Permitir uma vasta faixa islamista desde a Mauritânia aos desertos da Líbia e da Núbia seria cavar um fosso ainda muito maior do que o é o Mediterrâneo, fosso esse que faria com que a sul do Trópico de Câncer vigorasse um quotidiano de medo e de radicalismo, do tipo dos taliban. Portanto, para que tal não aconteça, a União Europeia e o Ocidente em geral devem deixar-se de ambiguidades, não atribuindo menos importância aos assuntos da África do que aquela que pretendem dar aos casos do Irão, do Iraque, do Afeganistão, do Paquistão ou da Síria. Muita coisa de interesse para a Humanidade está a ser julgada no Mali e nos países vizinhos. É preciso que Bruxelas, Berlim e Washington o compreendam. Primaveras sombrias Um dos erros mais crassos do Ocidente, nos últimos dois anos, teria sido o ingénuo entusiasmo com que apadrinhou ou aplaudiu as ditas Primaveras árabes, que iriam supostamente liberalizar os sistemas político-administrativos da Tunísia, da Líbia e do Egipto. Isso não aconteceu, ou pelo menos ainda não aconteceu como se esperava. Enganaram-se todos os que supunham que em 18 ou 20 meses os tunisinos, os líbios, os egípcios ou os iemenitas iriam passar a viver em moldes algo equiparáveis aos dos franceses ou dos italianos. Em vez de liberalização, tivemos muitas vezes uma deriva para o radicalismo islamista. A queda de Khadafi, por exemplo, abriu uma caixa de Pandora de onde saíram facções e tribos rivais prontas a desestabilizar tanto as diversas partes componentes da Líbia (Tripolitânia, Cirenaica e Fezânia) como até mesmo alguns outros países. "De boas intenções está o Inferno cheio", é o que se poderia responder aos que embandeiraram em arco com a Primavera Árabe; ou com as várias primaveras que estariam subitamente a florir por todo o mundo árabe. Europa, tigre sem dentes Em termos de estratégia militar, de defesa comum, a Europa baseada na amizade franco-germânica, a União Europeia (UE), é um autêntico tigre sem dentes, que nunca conseguiu dotar-se de uma força de 50.000 ou 60.000 soldados, para marcar posição no Mundo; para proteger os seus interesses. Foi por isso, por não haver regimentos tácticos conjuntos de alemães, franceses, polacos, checos e outros, que a França avançou agora sozinha para o Mali, com o mesmo fervor com que no século VIII enfrentara em Poitiers as investidas muçulmanas que se verificaram a partir dos Pirinéus, idas das terras hispânicas. A França, a Alemanha, a Holanda, o Reino Unido e o resto da UE não foram capazes, nestes últimos 20 anos, de constituir um Exército comum, que eventualmente defendesse os seus interesses no Sara e no Sahel, ao mesmo tempo que protegesse as populações desses territórios de uma desnecessária radicalização islâmica, de um fundamentalismo pretensamente baseado nos princípios da Sharia. Fanatismo religioso O fanatismo de alguns muçulmanos aumentou tremendamente nos últimos anos e não é a simples captura ou assassínio de pessoas como Osama bin Laden que o vai resolver. A acção tem de ser muito mais enérgica e bem estudada, num esforço comum de todos os que compreendem a ameaça, mostre-se ela no Afeganistão, no Iémen, no Bahrein ou no Norte da Nigéria. A guerrilha planetária travada em nome de Allah vai de vento em popa, não se podendo ficar seguro pelo simples facto de as tropas franceses terem agora durante algumas semanas conseguido fazer retroceder o perigo islamista, que de um momento para o outro poderá ressurgir, sob as mais diversas formas. A África actual, a África que se situa entre o Sara e a savana, é um novo Afeganistão, pelo que, por exemplo, na Argélia poderão explodir os gasodutos que trazem combustível para a Europa. E tanto o Mali como o Níger e o Chade correm o risco de se transformar em novas Somálias, países sem rei nem roque, sem administração central. Intervenções pontuais, como a francesa, poderão diminuir durante algum tempo a miséria de milhões de africanos, mas só uma actuação muito coesa, muito bem estruturada, poderá realmente, a longo prazo, ter o êxito que se deseja.

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