12.11.12
O Sacro Império Euro-Germânico
Estará a UE a transformar-se num império governado pela Alemanha? Para o sociólogo alemão Ulrich Beck, devíamos aproveitar este receio generalizado e muito debatido, para estabelecer uma nova organização da União, com base numa verdadeira comunidade de cidadãos. Excertos.
Ulrich Beck
A Europa já antes realizou um milagre: inimigos passaram a bons vizinhos. À luz da crise do euro, temos uma vez mais de enfrentar a questão crucial: como pode a Europa garantir paz, liberdade e segurança aos seus cidadãos, no meio das tempestades arriscadas que assolam o mundo globalizado? Isto apela para nada menos que um segundo milagre: como pode a Europa da burocracia tornar-se uma Europa dos cidadãos?
Era uma vez… Depois de a dívida grega ter sido reduzida, as pessoas começaram a respirar e a ter esperança: a Europa tinha sobrevivido e estava mesmo suficientemente forte e ágil para superar os seus problemas. Então, o primeiro-ministro grego, George Papandreu, anunciou que queria colocar a questão fatídica ao povo grego num referendo. De repente, veio à tona uma realidade oculta e invertida. Na Europa, tão orgulhosa da sua democracia, alguém que pratique a democracia torna-se uma ameaça para a Europa! Papandreu foi forçado a cancelar o referendo democrático.
Embora ainda há pouco tempo contássemos, para citar o poeta alemão Hölderlin, que "onde há perigo, cresce também a salvação", está agora a aparecer no horizonte uma contrarrealidade nova: onde há salvação, cresce também o perigo. De imediato, insinuou-se na cabeça das pessoas uma questão nervosa: as medidas tomadas para salvar o euro estarão a acabar com a democracia europeia? Será que a UE "resgatada" está a deixar de ser uma União Europeia, tal como a conhecemos, e a tornar-se um IE, um Império Europeu com selo alemão? Esta crise interminável estará a parir um monstro político?
Não há muito, era comum falar-se em termos depreciativos sobre a dissonância dentro da União Europeia. Agora, de repente, a Europa tem um único telefone: toca em Berlim e, de momento, pertence a Angela Merkel.
Derrubar os Potemkin erguidos por países devedores
Alguns alemães acreditam que o seu modelo exerce uma atração magnética sobre os povos da Europa: os europeus estão a aprender alemão, dizem. Mas seria mais realista perguntar: qual é a base do poder em execução? Angela Merkel ditou que o preço de dívidas sem restrições é a perda de soberania.
Esse futuro que ganha forma no laboratório da recuperação do euro como um efeito colateral intencional assemelha-se – hesito em dizê-lo – a uma variante europeia tardia da União Soviética. Uma economia centralizada já não significa elaborar planos quinquenais para a produção de bens e serviços, mas planos quinquenais para a redução da dívida. O poder executivo tem vindo a ser colocado nas mãos de "comissários", autorizados por "direitos de acesso direto" (Angela Merkel) a não hesitar em derrubar os Potemkin erguidos por famigerados países devedores. Todos sabemos como a URSS acabou.
Mas haverá alguma oportunidade no meio da crise? O antigo Presidente norte-americano John F. Kennedy em tempos surpreendeu o mundo com a sua ideia de criar um corpo de paz. Por analogia, a neo-europeia Angela Merkel devia atrever-se a surpreender o mundo com a perceção e iniciativa de que a crise do euro não é apenas uma questão de economia, mas do início da europeização da Europa a partir de baixo, de diversidade e autodeterminação, de um espaço político e cultural em que os cidadãos não se confrontam uns aos outros como inimigos privados de direitos e sugados até à medula. Crie-se a Europa dos cidadãos, já!
A liberdade precisa de um terceiro pilar
O Estado de Direito e o mercado não são suficientes. A liberdade precisa de um terceiro pilar, para se tornar segura: é ele a sociedade civil europeia. Em termos mais concretos, há que construir a Europa e a atividade cívica europeia. Tal prática cívica autónoma, com a concessão de financiamento básico aos jovens desempregados da Europa, iria, sem dúvida, custar muito dinheiro, mas representaria apenas uma fração dos zeros que foram e vão continuar a ser, provavelmente, engolidos pela recuperação dos bancos.
Não devemos ter medo da democracia direta. Sem oportunidades transnacionais para intervenções de baixo para cima, sem referendos europeus sobre os temas europeus que fazem tremer o navio oceânico Europa, a empresa irá falhar no seu conjunto. Porque não fazer eleger diretamente o presidente da Comissão Europeia por todos os cidadãos europeus no mesmo dia, tornando-os, assim, pela primeira vez, europeus no sentido estrito?
Também podia fazer sentido nomear uma nova assembleia constituinte, que, desta vez, conferisse legitimação democrática a uma outra Europa – chamemos-lhe "Comunidade Europeia de Democracias". Isso seria apenas um começo, não a resposta para a crise europeia. Temos que falar da Europa do citoyen, do citizen, do burgermaatschappij, do ciudadano, do obywatel, etc., dados os antagonismos escondidos na fórmula unificadora "Europa dos cidadãos". Como é possível uma democracia europeia sem desautorizar os parlamentos nacionais? Supondo que se reconhece que a aplicação de direitos democráticos envolve e requer muitas vias, pode a autoridade democrática de uma Europa cosmopolita ser acompanhada por um reforço das democracias nacionais nos Estados-membros?
A resposta passa por essa nova Europa não seguir o modelo alemão de euro nacionalismo, mas o de uma emergente Comunidade Europeia de Democracias. E a partilha de soberania tornar-se um multiplicador de poder e democracia.
– The Guardian
Dezembro 2011
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