Júlio de Magalhães, em Lisboa (www.expresso.pt)
Domingo, 26 de fevereiro de 2012
Realizou-se no passado dia 24, em Tunis, uma conferência internacional auto-intitulada "Os Amigos da Síria", com a participação de cerca de 60 países, registando-se a ausência, óbvia, da Rússia e da China.
A conferência foi apadrinhada pelo novo poder político tunisino, pertencente ao partido islâmico Ennahda, o que não obstou a que centenas de tunisinos e de sírios residentes na Tunísia manifestassem a sua oposição à iniciativa, tentando invadir o hotel onde se realizava a reunião, e que foram dispersos pela polícia.
Os grandes corifeus deste encontro foram a secretária de Estado norte-americana, Hillary Clinton e o ministro saudita dos Negócios Estrangeiros, Saud Al-Faisal, bem como o presidente do principal grupo de oposição sírio, o Conselho Nacional Sírio (CNS), Burham Ghallioun. Existem vários grupos de oposição na Síria, que não se entendem uns com os outros.
Tendo as Nações Unidas e a Liga Árabe concordado em designar o ex-secretário-geral da ONU, Kofi Annan, como enviado especial a Damasco, com a missão de tentar encontrar uma solução que ponha termo aos confrontos, foi principal preocupação desta reunião a ajuda humanitária e a elaboração de um pedido da Liga Árabe ao Conselho de Segurança no sentido deste aprovar o envio para o terreno de uma força de paz conjunta ONU/Liga Árabe, já que o mesmo Conselho chumbou há dias, com o veto da Rússia e da China, a proposta de Resolução apresentada pelos Estados Unidos, pela Liga Árabe e por alguns países ocidentais, que, com "propósitos humanitários", preconizava a invasão da Síria, a deposição do presidente Bashar Al-Assad e a queda do regime. O "pequeno" óbice do veto sino-russo determinou que os propósitos desta conferência dos "amigos da Síria" fossem agora mais modestos, o que desiludiu o representante do CNS e também alguns países mais impetuosos, mesmo entre os árabes, como a Tunísia, a Líbia, a Arábia Saudita, o Qatar, o Bahrein, o Kuwait, o Oman e os Emirados Árabes Unidos, que pretendiam, para já, uma intervenção armada. O ministro saudita dos Negócios Estrangeiros declarou mesmo que o seu país tem estado a fornecer armamento à oposição síria, o que já se sabia, tal como os outros países do Golfo e também a Turquia, sendo que parte dessas armas é de proveniência americana ou doutros países ocidentais. A entrada das armas está a fazer-se pelas fronteiras da Jordânia e da Turquia, sendo que, por ironia, as armas turcas apreendidas pelos soldados regulares sírios estão a ser entregues aos curdos do PKK, inimigos do governo de Ankara.
A situação na Síria pode resumir-se, grosso modo, nos seguintes pontos:
1) Havia na Síria uma parcela minoritária da população descontente com o regime alauita da família Assad;
2) As revoluções da "Primavera Árabe" levaram esses descontentes, entusiasmados com o sucesso das insurreições na Tunísia e no Egipto (na Líbia houve uma intervenção armada estrangeira e no Bahrein as manifestações foram esmagadas pelas tropas sauditas) a promover manifestações de desagrado contra o governo sírio, a partir da cidade de Deraa;
3) Tendo as manifestações alastrado a outras cidades, o governo sírio procedeu a uma repressão quiçá desproporcionada, iniciando-se uma espiral de violência;
4) O "mundo ocidental" e também as monarquias do Golfo estimularam e apoiaram a contestação ao regime, com dinheiro, armas e mesmo soldados. Muitos dos combatentes anti-regime são árabes mas não são sírios;
5) Não é segredo para ninguém que existe um plano americano e ocidental para derrubar o regime sírio, o último regime laico de um país árabe, substituí-lo por um regime pró-ocidental e assim proporcionar um mais fácil ataque ao Irão;
6) A "comunidade internacional", porém, avaliou mal o volume de contestação da população síria. Muito mais de metade da população síria apoia o regime de Assad, não tanto por simpatizar especialmente com ele (há todavia muita gente que simpatiza), mas porque a sua queda desencadeará, como aconteceu e continua a verificar-se no Iraque, uma interminável guerra civil, com o caos inevitável.
7) Sendo a população síria composta por cerca de 20 confissões religiosas, de que são naturalmente indissociáveis vários interesses económicos, apenas um regime laico é susceptível de manter a ordem e a segurança no país. Os principais opositores de Assad são muçulmanos fundamentalistas, a começar pela própria Al-Qaeda e pelos sunitas patrocinados pelas monarquias do Golfo. Os alauitas, a que pertencem Assad e as principais figuras do regime, são minoritários, e existem, em percentagens distintas, sunitas, xiitas, drusos, católicos, protestantes diversos, ortodoxos gregos e outros, arménios, coptas, maronitas, melkitas, e até judeus;
8) Como a violência gera violência, têm aumentado as atrocidades de parte a parte, num conflito que dura já há cerca de um ano. Esta espiral de violência é francamente favorável aos apologistas de uma intervenção armada no país;
9) É curioso verificar-se o apoio que os fundamentalistas islâmicos que estão já no poder (Tunísia e Líbia; o Egipto é um caso em suspenso, apesar da recente eleição para a Assembleia Nacional ter registado uma votação de 70% nos partidos islamistas) prestam aos Estados Unidos e países da NATO. As monarquias da Península Arábica, que sempre foram pró-americanas, não causam admiração. Mas esta estranha aliança do "mundo ocidental" com o fundamentalismo islâmico não pode deixar de causar perplexidade, já que o ex-presidente Bush convocara o mundo "livre" para uma luta contra a Al-Qaeda e o extremismo islâmico, uma Cruzada contra o Mal, em nome da qual invadiu o Afeganistão e o Iraque. Como diria Fernando Pessoa, "Malhas que o Império tece".
Que mais surpresas nos reservará o futuro?
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