24.1.14
Bissau: Uma montanha de problemas a equacionar
Por Francisco Henriques da Silva (no blog Luís Graça e camaradas da Guiné)
Raul M. Braga Pires, politólogo, arabista, professor da Universidade de Rabat e investigador do Observatório Político em Marrocos, doutorando do ISCSP, edita com regularidade um blogue, também publicado no conhecido semanário “Expresso”, sobre assuntos do Médio Oriente e Magrebe, tendo dedicado alguma atenção à Guiné-Bissau, onde se deslocou váriasvezes. Lançou recentemente um livro “Magrheb/Machrek – Olhares luso-marroquinos sobre a Primavera Árabe” (Diário de Bordo, Lisboa, 2013), onde reproduz todos os textos que publicou no “Expresso” e no dito blogue. Após uma incursão pelo Norte de África, Médio Oriente e Sahel, ou seja o prato forte da obra, digamos assim, apresenta três capítulos (ou, se se quiser, 3 “posts”) relevantes e bastante informativos sobre a atualidade daquele pais lusófono oeste-africano, que, no seu entender, tem que ver com a evolução política e estratégica das regiões contíguas. Daí a sua inclusão. Depois de ler o que Raúl Braga Pires escreveu, elaborei uma pequena recensão, que complementei com outros elementos e com algumas reflexões da minha lavra.
O autor começa por se referir à “intentona/inventona” (?) de 21 de Outubro de 2012, classificando a situação como sendo “confusa” e considerando que “a realidade ultrapassa em muito a ficção”. Acrescentaria que estas classificações e considerações são quase eufemísticas perante o caos que é hoje a Guiné-Bissau e do qual teima em não sair. Braga Pires menciona a balantização do Poder político e militar (que, aliás, não é de hoje, mas que se terá acentuado com o “putsch” de 12 de Abril de 2012), em que Kumba Ialá emerge com ambições ao Poder (no meu entender e para que as coisas não aparentem ser tão óbvias, Kumba tem no terreno, como se sabe, gente sua e poderá controlar a situação de fora sem necessidade de grande exposição pessoal, manobra táctica que me parece óbvia). Menciona um sem-número de factos, bem como algumas suposições plausíveis, atenda-se ao contexto. Em primeiro lugar, assistia-se – e assiste-se - a uma tribalização do poder político e militar, donde no conflito balantas-felupes, os primeiros levaram necessariamente a melhor. As danças e contra-danças entre as classes castrense e política, a promiscuidade generalizada sobretudo a este nível, são o que se adivinha e não valerá a pena pôr muito mais na carta. Carlos Domingos Gomes (Cadogo), PM deposto e frustrado candidato presidencial, continua a aspirar elevar-se um dia à cadeira do Poder. A actuação do capitão Pansau N’Tchama é no mínimo surrealista e as suas ligações a Portugal e à CPLP (leia-se Angola e Cabo Verde) abstrusas. O autor suscita as estranhas coincidências de ter chegado a Bissau com uma equipa de reportagem a escassas horas da “intentona/inventona” e da libertação de Pansau N’Tchama, com alegadas ligações a Portugal, ter precisamente ocorrido na véspera da sua partida.
Braga Pires faz uma análise do primeiro trimestre de 2013, salientando a chegada de Ramos Horta e a sua declaração algo desmedida ao considerar a “Guiné-Bissau como o país mais seguro da África Ocidental” (sic). O representante da ONU chega também num momento em que o PAIGC assina o Pacto de Transição e em que era já perceptível que o período transitório teria de ser necessariamente prorrogado. Neste quadro, há que tomar-se em atenção que o recenseamento biométrico da população não poderia ser feito durante a época das chuvas, o que levaria inevitavelmente a um adiamento das eleições. Apesar da descentralização anunciada e auto-elogiada pelo Governo, o autor põe em causa o recenseamento biométrico, efectuado sem grande publicidade nem campanhas de sensibilização junto da população. Neste contexto, acresceriam ainda enormes dificuldades de ordem logística e financeira. Tendo em conta os factores enunciados, o próprio PR admitiu a inevitabilidade de se prolongar o período de transição.
Ao referir-se à cimeira da CEDEAO (Comunidade Económica de Estados da África Ocidental), que a Guiné-Bissau integra, considera Braga Pires que “a solução da questão Norte do Mali/terrorismo estará sempre dependente duma resolução dos conflitos internos da Guiné-Bissau, ambos os países têm governos provisórios saídos de golpes de Estado” . Com efeito, os dois países ter-se-ão comprometido a realizar sufrágios eleitorais até 31 de Dezembro de 2013. Viu-se.
Por outro lado, haveria a necessidade do Governo de Transição ser reconhecido internacionalmente, para poder levar a cabo as tarefas a que se propôs, designadamente a condução do processo eleitoral, o que o autor admite como plausível. Mas, acrescento, com excepção da CEDEAO, mais ninguém o reconhece.
Menos claro foi o julgamento do capitão Pansau N’Tchama que acusou o deposto CEMGFA, Zamora Induta, de o ter coagido à tentativa de “putsch” de 21 de Outubro de 2012, acusando as autoridades gambianas de envolvimento na suposta operação, bem como inúmeras personalidades locais com ligações ao PAIGC e a figuras militares e politicas, algumas de destaque como é o caso de Domingos Simões Pereira, então Secretário Executivo da CPLP. O julgamento, aduzo, poderia, por assim dizer, “limpar o terreno” de muitos elementos incómodos e permitir uma actuação “mãos livres” de António Indjai (actual CEMGFA) e de Bubo Na Tchuto, entre outros. Até aqui nada de novo, a Guiné-Bissau conhece desde há muito estes processos sombrios como devem ser conduzidos e para que servem.
Alguns factos, porém, vêm a alterar o panorama. Em Abril de 2013, o almirante Bubo Na Tchuto é apanhado numa armadilha muito bem montada pela DEA (Drug Enforcement Agency) norte-americana, detido em águas internacionais e levado para os EUA, a aguardar julgamento. Estavam em causa 4 toneladas de cocaína (cujo valor médio na rua pode atingir entre 130 a 160 milhões de Euros!). Sabia-se que Na Tchuto, bem como Papá Camará (Chefe de Estado Maior da Força Aérea) e o próprio António Indjai, estão desde há muito envolvidos no tráfico de droga. O primeiro estava identificado pela DEA desde 2010. Tanto quanto sei por outras fontes, a operação consistiria na troca de armamento das Forças Armadas da Guiné-Bissau para a guerrilha colombiana das FARC por cocaína. Não se trataria de armamento convencional, mas, sim, de mísseis terra-ar! Os agentes da DEA fizeram-se passar por membros da guerrilha. Em suma, estamos a falar de uma operação sofisticada a uma escala muito grande e que teria outros envolvimentos cujos pormenores, porém, desconheço.
Por outro lado, soube-se que Na Tchuto permitiu a evasão de 3 jihadistas mauritanos acusados de terem assassinado 4 turistas franceses no sul da Mauritânia em 2007. Um agente secreto norte-americano teria sido despachado para o local mas apareceu morto (degolado), o que indicaria a presença de fundamentalistas islâmicos. Na opinião de Braga Pires, para além de traficante de droga, Bubo Na Tchuto teria ligações à AQMI (Al Qaeda no Magrebe Islâmico) que opera na África Ocidental, designadamente na Guiné-Bissau.
Para a detenção de Na Tchuto, os norte-americanos terão presumivelmente obtido a cumplicidade de Indjai, uma vez que este queria livrar-se de um rival e os norte-americanos a detenção do almirante. Este último era objecto de um processo de reabilitação por envolvimento num golpe de Estado (mais um no rol que averba a Guiné-Bissau) em 26 de Dezembro de 2011, que levou ao seu exílio temporário na Gâmbia. Ora, Na Tchuto tinha por objectivo principal substituir Indjai como CEMGFA. É tão simples quanto isto.
Como refere a justo título o autor e citamos: “A primeira novidade da acusação apresentada pelos americanos é absolutamente demolidora para as duas principais figuras do Período de Transição: o Presidente interino, Manuel Serifo Nhamadjo e o Primeiro-ministro interino, Rui Duarte Barros, são implicados nas provas apresentadas pela DEA.” Aparentemente, essas altas figuras do Estado beneficiariam de 13% do “produto/negócio” (?), apesar dos desmentidos indignados, a dúvida obviamente permanece.
Dizer que a credibilidade da Guiné-Bissau e das mais altas figuras civis e militares do Estado foi afectada é um mero eufemismo. Resta saber neste quadro pouco auspicioso como é que a Guiné-Bissau se vai financiar para poder realizar eleições? O próprio Secretário-geral da ONU já admitiu que pode deixar cair a Guiné-Bissau e abandoná-la como a Somália. Se a Guiné-Bissau não consegue assumir as funções basilares de um Estado será ou não um Estado falhado? Era bom que não se mastigassem as palavras.
Aliás, os acontecimentos mais recentes naquele país, caso dos 74 sírios embarcados à força nos aviões da TAP, que levaram à suspensão das ligações aéreas Lisboa-Bissau, reforçam a nossa tese, isto é que não se está perante um Estado minimamente sério.
No meio de tudo isto e tendo em conta o julgamento do capitão Pansau N’Tchama, as tensões étnicas, as fricções do foro castrense, as rivalidades entre diferentes pseudo-líderes civis e militares e, agora, os atritos inter-religiosos geram um quadro de forte instabilidade que pode desembocar numa guerra civil gravíssima. O alerta aqui fica.
Registo que Raúl Braga Pires chama a atenção para um facto novo: o conflito entre sunitas e xiitas. A maioria da população islamizada é como se sabe de obediência sunita, mas os libaneses, de fé xiita, há muito radicados no país, já criaram raízes e prosélitos na Guiné-Bissau. Iremos assistir à criação de mais um foco de tensão, até agora insuspeitado?
Haveria que reflectir-se sobre a intervenção francesa no Mali e no problema da droga. A questão é, para todos os efeitos, regional. De acordo com várias fontes fidedignas, o circuito da droga parece estar a alimentar os jihadistas e a Guiné-Bissau aparece nesta equação como um factor que, pelas razões expostas, não pode ser ignorado. A pacificação do Mali – e sabendo-se da proliferação dos grupos islamitas por todo os Estados do Sahel – é uma questão de importância vital, mas essa intervenção não pode limitar-se apenas ao Norte do Mali, como se tratando apenas de um abcesso localizado a extirpar, a Guiné-Bissau, cujos governantes actuais não merecem qualquer credibilidade, terá também de ser intervencionada, ou seja o alargamento da Missão de Paz no Mali pode (deve) estender-se à Guiné-Bissau.
Bom, já agora, eleições para quando?
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