13.1.14

RCA e Sudão do Sul: duas tragédias paralelas

No interior da África Negra, por volta da latitude 5 graus acima do Equador, os povos do antigo Ubangui-Chari (hoje República Centro-Africana) e da parte meridional de um Sudão que chegou a ser condomínio anglo-egípcio estão hoje a viver um sofrimento indescritível, merecedor de toda a nossa compaixão. Tentemos compreender o que se passa. Jorge Heitor Depois de a maior parte dos actuais estados africanos ter obtido a sua independência, muitos deles há 50 ou há 54 anos, as fronteiras artificiais de uns quantos foram consideradas a mais potente fonte de conflito e de instabilidade, pois que não correspondiam de forma alguma ao que uma grande parte da África verdadeiramente era ainda em meados do século XIX. E surgiram acalorados debates sobre se se deveria ou não rever as fronteiras traçadas pelas potências coloniais, na Conferência de Berlim e algum tempo depois. A Organização da Unidade Africana (OUA), que entretanto deu origem à União Africana (UA), foi da opinião de que tudo se deveria manter como estava, para evitar males maiores. Mas a verdade é que acontecimentos como os destes últimos meses na República Centro-Africana (RCA) e no Sudão do Sul vieram uma vez mais demonstrar o artificialismo de tantos estados da África, onde sete, dez ou vinte povos coabitam muito mal, cada um deles com a sua língua e com uma cultura próprias. Pretende-se que as repúblicas africanas tenham uma estrutura e uma vida política equiparáveis às do Reino Unido, da França ou da Alemanha. Só que, isso não está de acordo com a verdade mais profunda de muitas etnias da África, que ainda desconhecem o que seja um Estado, nos moldes em que o entendemos em Lisboa, Paris ou Berlim. E desse equívoco derivam os conflitos e a incapacidade de a RCA, o Sudão do Sul ou a República Democrática do Congo (RDC), por exemplo, viverem tão cedo dentro do estilo de unidade que há muito se forjou em Portugal, na França ou na Alemanha. Realidades completamente diferentes não se podem reger por modelos idênticos. Conflitos estão para durar O perigo de conflitos desestabilizadores vai-se continuar a sentir, ainda durante mais algumas décadas, na RCA, no Sudão do Sul, na RDC ou na Guiné-Bissau. Ninguém pense que os problemas básicos destes países se consigam resolver de forma satisfatória nos próximos seis ou sete anos. Não há, de modo algum, condições para tal; por mais conferências ou discursos que se façam. É a esta luz, em grande parte, que deveremos ler e interpretar as notícias assustadoras que em Dezembro de 2013 e em Janeiro de 2014 nos chegaram de Bangui e de Juba, com muitos mortos, feridos e desalojados; num infindável cortejo de horrores. A coabitação forçada de grupos étnicos que há 70 ou 90 anos nada tinham a ver uns com os outros só poderia gerar faísca, ingovernabilidade. Nas capitais dos estados africanos até se poderá viver de uma forma não muito diferente da de Lisboa, Madrid, Paris; mas quando se sai 300 ou 400 quilómetros dos grandes centros populacionais logo se encontra uma África muito diferente, com costumes bem arreigados, dentro dos quais é muito difícil vingar o projecto de eleições presidenciais e legislativas que decorram como nos países mais desenvolvidos; ou até mesmo a existência de um hino nacional sentido de igual modo por 15 ou 20 etnias diferentes. A grande mistificação Criados dentro de fronteiras que a França, o Reino Unido, Portugal e alguns outros países europeus delinearam, os estados africanos começaram por ser dirigidos por políticos formados em universidades ou outras instituições europeias ou norte-americanas, longe da realidade dos seus antepassados; e que portanto tentaram seguir modelos que nada diziam aos seus pais e avós, surgindo daí a grande mistificação da África contemporânea. Só depois de todo este preâmbulo é que nos podemos debruçar sobre a triste situação humanitária da RCA, com um bom milhão de desalojados, num território a que há 60 anos se chamava Ubangui-Chari e tinha como principal político Barthélémy Boganda, que em Março de 1959 morreu num desastre de aviação, tendo-lhe sucedido como principal figura local seu primo David Dacko. O golpe de Março do ano passado, que depôs o Presidente François Bozizé, foi apenas mais um, num espaço que só há menos de seis décadas se chama RCA e que, portanto, não se encontra de forma alguma consolidado, como entidade nacional. É um mero projecto, como tantos outros existentes num continente do qual se poderá dizer que ainda há meio século tinha comunidades a viver como que no neolítico. Os ataques a civis, os saques e a intervenção do Exército francês marcaram estes últimos meses na RCA, que (recorde-se) até já foi um "Império", por decisão do louco coronel Jean-Bedel Bokassa, primo de David Dacko. A coroação, ao estilo de Napeolão Bonaparte, verificou-se em 4 de Dezembro de 1977 (foto). Instabilidade crónica Na senda de uma instabilidade crónica, grupos de rebeldes, essencialmente muçulmanos e congregados numa rede designada Seleka, afastaram o ano passado o Presidente Bozizé (de formação evangélica) e provocaram o caos, até que os militares franceses intervieram, ao lado de 4.000 soldados de diferentes países africanos. Nestes últimos 10 meses, 75.000 cidadãos da RCA fugiram para o estrangeiro, nomeadamente para os dois Congos, o Chade e os Camarões, demonstrando assim, uma vez mais, o quanto os acontecimentos de um país se podem repercutir em outros, originando verdadeiras crises regionais. Há semanas, o Presidente interino da República Centro-Africana, Michel Djotodia, completamente incapaz de acabar com a violência entre milícias cristãs e muçulmanas, foi obrigado a demitir-se e a partir para o exílio, no Benin, de modo a dar lugar a alguém com mais capacidade para impedir o genocídio sectário. E de igual modo se demitiu o primeiro-ministro Nicolas Tiangaye Nessa altura, na segunda semana de Janeiro, já havia 2,2 milhões de cidadãos centro-africanos a necessitar de ajuda humanitária. O falhanço de Juba Quanto ao Sudão do Sul, o Congresso norte-americano, que se regozijara com o seu nascimento, manifestou agora a opinião de que a actual crise não era inevitável nem imparável. Tratar-se-ia, isso sim, de uma crise política e de um claro falhanço da liderança do jovem país, que algum tempo antes de nascer perdera o seu principal mentor, John Garang. Como em tantos outros casos, estaria a verificar-se que determinados grupos sabem alcançar a independência mas depois não sabem muito bem o que fazer com ela; não a sabem defender e consolidar. A vida independente do território começou apenas há três anos, em 2011, com grandes promessas, associadas a uma certa abundância de recursos naturais (a começar pelo petróleo) e ao forte apoio internacional, designadamente de Washington e das igrejas cristãs. Mas permaneceu o perigo de assuntos ainda por resolver com Cartum, muitos deles relacionados com a exploração petrolífera e com o desenhar das fronteiras, como na caso da região de Abiyei. Permaneceram as feridas profundas dos 22 anos da mais recente guerra entre o Sudão setentrional e o meridional, só para falar destas últimas décadas, uma vez que já outros combates se tinham travado em épocas anteriores. Falta de prática O Sudão do Sul não estava muito habituado a ser autónomo (uma autonomia não é coisa que se possa solidificar em meia dúzia de anos) e era constituído por uma série de comunidades, umas cristãs e outras animistas; comunidades que só tinham em comum o desejo de se libertar da opressão nortista, que lhes queria impor a sharia, a lei muçulmana. Não havia uma boa rede de estradas nem de telecomunicações. Não havia um bom ponto de partida para colocar em funcionamento normal um Estado moderno, pelo que alguns analistas começam agora a perguntar se não teria havido uma certa precipitação na proclamação da independência. Possivelmente, funcionou mais o coração do que a cabeça. Traduzindo tudo isto em termos mais concretos, a actual crise é o resultado directo da incapacidade do Presidente Salva Kiir (sucessor de Garang) e do antigo vice-presidente Riek Machar para evitar o recurso à violência como forma de resolver as suas divergências políticas. E só não é pior porque, felizmente, não alastrou à totalidade do país. Algumas zonas permanecem pacíficas, com dirigentes da sociedade civil e de instituições religiosas a esforçarem-se para que se alcance um apaziguamento, um arrefecer dos ânimos. ---------- (Trabalho a sair em Fevereiro na revista comboniana Além-Mar)

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