3.12.14

Crónicas dos Desfeitos da Guiné

Em boa hora as Edições Almedina acabam de proceder à reimpressão do livro Crónicas dos (Des)feitos da Guiné, do nosso confrade Francisco Henriques da Silva,
cuja edição de Setembro de 2012 estava esgotada. O acento tónico da obra é a guerra civil de 1998-1999, era a sua primeira experiência como embaixador, a Guiné caíra-lhe na rifa, a Guiné onde combatera entre Setembro de 1968 e Abril de 1970.Dá-nos um relato esclarecedor e singelo do que foi a vida da CCAÇ 2402, primeiro em Có, onde tiveram batismo de fogo em 29 de Agosto, e aí viveu a experiência de proteção aos trabalhos de construção e asfaltamento da estrada Bula-Có-Pelundo, e depois em Mansabá, onde protegeram a construção da estrada Mansabá-K-3-Farim. Feito este trabalho de cantoneiros, foram lançados no Olossato, na região do Oio, mais um destacamento Ponte Maqué, que ele apresenta da seguinte forma: “A 7 km do Olossato e a uns 11 ou 12 de Bissorã encontrava-se o destacamento de Ponte Maqué, um bunker em forma de quadrilátero, com um pátio central, na orla de uma bolanha, junto a um riacho, a maior parte do tempo seco ou quase, que albergava um grupo de combate. A ponte que, em tempos idos, foi de cimento e alvenaria, tinha sido dinamitada logo no início da guerra e havia sido reconstruída com toros de madeira, o que permitia a passagem de veículos pesados. Esta ponte era verdadeiramente vital pois permitia a conexão por estrada de Olossato com Bissorã e daí a Mansoa, Bissau e ao resto do território, por outras palavras, era a única ligação terrestre possível, porquanto as conexões com Mansabá e Farim estavam cortadas”. E descreve seguidamente a vida em Ponte Maqué: “Sem energia elétrica, a proteção era-nos dada por umas duas ou três fiadas de arame-farpado, e por um campo de minas e armadilhas, delimitado pelas linhas de arame. A estrada nos dois sentidos, na direção de Bissorã e de Olossato era sempre armadilhada ao pôr-do-sol, sendo as granadas retiradas ao raiar de aurora, antes da população local se deslocar para a faina agrícola nas bolanhas vizinhas. Volta meia-volta os macacos saltitavam pelos campos de minas e rebentavam-nas, sendo invariavelmente saudados por rajadas de metralhadora e pelas imprecações dos soldados que acordavam estremunhados com os rebentamentos. Como oficial com a especialidade de explosivos, competia-me montar e desmontar as armadilhas em torno do destacamento de Ponte Maqué, bem como participar, juntamente com outros membros da minha equipa, na desminagem das picadas”. Estamos em Outubro de 1997, chega a Bissau, apresenta credenciais ao presidente Nino Vieira e logo o secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros e Cooperação inicia uma viagem oficial à Guiné-Bissau, Henriques da Silva regista com humor e muita coloquialidade a aparição de Kumba Ialá num jantar na embaixada em que está o secretário de Estado português e os ministros dos Estrangeiros e da Justiça, é uma descrição memorável: “- Meu caro embaixador, desculpa lá eu vir tarde, já passa das dez, mas não tenho fome. Ena, pá, tanta gente! Alguns eu conheço… - Oh, dr. Kumba, isso não tem a menor importância – disse ele, sem desmanchar, perante os olhares meio sorridentes dos dois Ministros presentes – Diga lá, o que é que quer tomar? - Um sun-sun (aguardente de caju) – retorquiu. - Bom, isso não há mas tenho algo de parecido. - Lá pedi ao Augusto que lhe serviço um conhaque ou um brandy e deixei-me ficar por perto, pois temia o que pudesse vir a passar-se e com Kumba Ialá o imprevisível era quase sempre o prato do dia – tudo podia acontecer. Entretanto, José Lamego aproximou-se também. - Ora cá está o Secretário! Sabe quem é este gajo? – e aponta com um dedo esticado para Delfim da Silva, enquanto emborcava o conhaque – este foi um dos que roubou os meus votos, por isso é que eu perdi as eleições. Sorriso amarelo por parte do visado e dos circunstantes que se entreolharam um tanto embaraçados. - Mas este ainda é pior – e vira-se, então, para o ministro ad Justiça, Daniel Ferreira – este é que é um dos responsáveis pelos 20 mil votos que eu perdi nos Bijagós. Este agora é ministro da Justiça, secretário! Ouça o que eu lhe digo, esta gente do Governo não é séria! Mas vocês dão-lhes confiança… Comecei a ver a vida a andar para trás. O primeiro jantar oficial que oferecia na residência a ministros locais e ao meu secretário de Estado, redundava num fiasco completo…”. Henriques da Silva passa a escrito as impressões de Bissau, mas também as incongruências da cooperação, os sinais de instabilidade das Forças Armadas guineenses, o oportunismo da sua política externa, os equívocos do relacionamento luso-guineense, o caldeiro da questão Casamansa e em que medida a insurreição ali existente veio a contribuir para o detonar do levantamento militar chefiado por Ansumane Mané. O país está em polvorosa, abatido pelo défice e pelo gradual empobrecimento, onde chegara a hora de os combatentes da liberdade da pátria redigirem uma carta-panfleto, a pretexto do tráfico ilegal de armas, ali vinham acusações a Nino, o caderno reivindicativo apelando à dignidade dos antigos combatentes que beneficiavam de pensões miseráveis. Estão ali repertoriados dados significativos que nos vão fazer compreender a explosão desencadeada em 7 de Junho, o VI Congresso do PAIGC, realizado em Maio revelava que Nino era um senhor todo-poderoso e era apoiado por uma corte incondicional que não queria perder as suas regalias, aquele congresso saldou-se no impasse que deixava a ala renovadora do PAIGC desalentada. Tudo isto é descrito com episódios burlescos, situações por demais caricatas, pedinchice infindável. E veio o levantamento militar que Henriques da Silva irá viver em toda a sua intensidade. Não existirá relato tão minucioso e esclarecedor dos acontecimentos, ali vêm as peripécias dos media, a Bissau bombardeada e as populações em fuga, gente a acorrer à embaixada, tudo em estado caótico: “Alojados pelos corredores, nos sofás, nas banheiras, no chão, enfim, por tudo quanto era sítio, onde quer que houvesse espaço disponível, ali foram recebidos os nossos compatriotas, nos parâmetros típicos do nosso consabido desenrascanço lusitano”. O cargueiro “Ponta de Sagres” chega ao cais do Pidjiguiti e leva os refugiados enquanto troam os canhões, Henriques da Silva acompanha tudo, ocorre o milagre, a operação saldou-se num êxito. E a guerra continua por Junho fora, os senegaleses comportam-se como bárbaros e ocupantes, destroem património valioso. O êxodo continua, as populações de Bissau fogem para o interior. O alferes que vivera uma guerra contra o PAIGC assiste agora ao ódio dos guineenses favoráveis à Junta Militar a infligir perdas às tropas senegalesas e da Guiné Conacri, a nação dava a sua prova de vida humilhando os exércitos estrangeiros bem equipados. A guerra prossegue com Nino Vieira e os seus amigos circunscritos à península de Bissau e a algumas ilhas dos Bijagós. Há negociações, consegue-se um acordo mas a situação permanece explosiva. Em Maio seguinte, a Junta Militar entra em Bissau, Nino Vieira refugia-se na embaixada de Portugal. Renovava-se a esperança, mas foi tempo de pouca dura, os problemas de fundo iriam subsistir com novos equívocos nas Forças Armadas a querer decidir em nome do poder político. Equívocos atrás de equívocos que o autor comenta. Em Maio de 2000, o presidente Jorge Sampaio, por tudo o que se passou na Guiné-Bissau condecorou-o com a Grã-Cruz da Ordem Militar de Cristo. Para quem quer conhecer os dramas da Guiné-Bissau de todo este tempo, a leitura deste livro é indispensável, pela vivacidade dos estilo e pela quantidade de documentação trabalhada. -- Uma recensão assinada por Beja Santos, que com o embaixador Francisco Henriques da Silva é um dos autores do roteiro "Da Guiné Portuguesa à Guiné-Bissau".

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