2.3.15

A persistência da memória africana

Desde o Bornu até ao Borno Uma curiosa viagem histórica de muitos séculos pode ajudar-nos a compreender o que liga o antigo império de Bornu ao actual estado nigeriano de Borno, sede do grupo fundamentalista islâmico Boko Haram. Jorge Heitor A História, quando nos é contada por mestres fascinantes, como o burkinabe Joseph Ki-Zerbo, mostra-nos bem que muitas das coisas que estão a acontecer hoje em dia têm algo a ver com outras que se verificaram há 500 ou mais anos. E a África, ao contrário do que poderiam imaginar alguns, ainda no século XIX, teve ao longo dos tempos muitos reinos e impérios, não tendo sentido a necessidade de esperar os primeiros contactos com os europeus para se "civilizar". Por volta de 1600, por exemplo, a potência dominante nas imediações do Lago Chade era o Bornu, governado nessa altura por Idriss Alaoma, que se informou sobre as técnicas militares do Egipto e comandou tropas que recorriam ao uso tanto de cavalos como de camelos. Sabia-se então, sabia quem por lá vivia, que havia um reino de Bornu e um reino de Karem, se bem que quem estivesse na Europa julgasse muitas vezes que a sul do Sara as populações eram como que bandos de selvagens. Suposições obscurantistas que só com muita dificuldade viriam a ser abandonadas. Puritano islamista, Idriss Alaoma é um dos antepassados espirituais dos homens que actualmente vivem no estado nigeriano de Borno; e mandou construir em Meca, na Arábia Saudita, um albergue ou estalagem para os peregrinos. Naqueles tempos, no início do século XVII, a população de etnia e língua kanuri dominava a bacia do lago Chade, tal como hoje em dia os Kanuris constituem a parte principal dos quadros do movimento fundamentalista Boko Haram, que tanto actua em territórios nigerianos como nigerinos, chadianos e camaroneses. No século XVIII o Bornu ainda exercia uma grande influência cultural e religiosa no interior da África Negra, a sul do Trópico de Câncer, tendo guias espirituais que eram muito versados no Alcorão, o livro que diz que "não há outra divindade senão Deus e Maomé é o seu profeta". Sultões e cidadelas foram-se sucedendo nos territórios que hoje constituem o Níger, a Nigéria, o Chade e os Camarões, até que a colonização francesa e a britânica tentou em vão apagar da face da Terra a recordação desses tempos, como se isso alguma vez fosse possível. Não era! O Kanem, o Bornu e a Fezânia (sul da actual Líbia) são realidade bem palpáveis, que existiram há 600, 700, 800 anos; e que nenhum político do século XX seria capaz de apagar da memória dos povos. A África pode ter sido adormecida, anestesiada, durante o período colonial e os primeiros anos das independências que se seguiram à descolonização, mas ela não morreu, na sua verdade intrínseca, naquilo que verdadeiramente é. E ela está lá, na consciência dos povos, quer se queira quer não, quer se goste ou não goste. Haussas, Fulas, Kanuris, Saras e outros são povos africanos, de que evidentemente a maioria dos ocidentais nunca ouviu falar, mas que têm tanto direito de existir e tanto orgulho de o serem como os Bascos, os Catalães, os Corsos, os Sérvios ou os Croatas. É bom não esquecê-lo, para que não haja equívocos. O fundo cultural negro-africano persistirá sempre nos novos países da África Central, Oriental e Austral, por mais influências externas que estes tenham sofrido, nos últimos 125 anos. Querer ignorá-lo não será bom para ninguém.

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