A
entrada da Guiné Equatorial na CPLP tem gerado um interessante debate. A
novidade é a entrada na discussão de António Martins da Cruz. Recorde-se os
mais esquecidos que, depois de ter sido assessor diplomático de Cavaco Silva,
Martins da Cruz foi ministro de Durão Barroso – cargo do qual não se pode dizer
que tenha tido uma saída limpa.
Diz
Martins da Cruz que não encontra “razões para que a Guiné Equatorial não seja
aceite na CPLP”. A afirmação não provoca surpresa, acompanhando as declarações
servis de Luís Amado e Rui Machete. Os argumentos alternam entre a negação da
realidade e a admissão, essa sincera, de que as relações políticas entre Estados
não devem ser submetidas ao critério da democracia. Em todo o caso, valerá a
pena referir o que tenta esconder o trio Cruz-Amado-Machete sobre a ditadura de
Teodoro Obiang.
A
primeira ideia avançada por Martins da Cruz – à semelhança do que haviam dito
Luís Amado e Rui Machete – é a de que a Guiné Equatorial regista uma evolução no
que diz respeito aos direitos humanos. Diz o ex-ministro sobre a pena de morte:
“a Guiné Equatorial declarou uma moratória, ou seja, embora não a tenha abolido,
comprometeu-se a não a utilizar”. Trata-se da imagem perfeita da falácia
científica: inventam-se os factos (a moratória) para comprovar a teoria (os
progressos do regime). Acontece que, em rigor, a referida moratória não existe.
A referência à abolição da pena de morte, incluída na resolução presidencial nº
426/2014, tem apenas um carácter temporário e não tem qualquer perspetiva de
inclusão no quadro legal do país. Não tendo sido submetida a qualquer debate
parlamentar, nem tão-pouco a consulta referendária, aplicar-se-á apenas às
condenações já efetuadas.
Prova da artificialidade da
medida é o facto de o discurso oficial contrariar a prática seguida no país nos
últimos meses: em Fevereiro deste ano, Ana Lúcia Sá denunciou a “execução sumária sem direito a uma apelação” de
nove ativistas políticos. Esta denúncia foi prontamente confirmada pela Amnistia Internacional, que refere que “os
presos foram informados das suas iminentes execuções apenas 30 minutos antes de
as mesmas acontecerem”. O compromisso com a abolição da pena de morte não tem
outro valor que não o da palavra de Teodoro Obiang. Ou seja, não tem valor
algum.
As
sucessivas violações dos direitos humanos devem ser vistas à luz da realidade
social e política do país. Teodoro Obiang lidera o país desde 1979. Não é que o
facto impressione Martins da Cruz, que, numa entrevista recente, teceu simpáticos elogios a José
Eduardo dos Santos. A longevidade do regime é a imagem da sua elite dirigente: a
acumulação da família Obiang contrasta com a miséria de um país em que a
esperança média de vida à nascença é de 51 anos. Os dados do Fundo Monetário
Internacional (2011) referem que a Guiné Equatorial tem o 45º PIB nominal per
capita mais elevado do mundo. Contudo, o relatório anual da Human Righs Watch refere que o país “tem de
longe a maior diferença de todos os países entre o seu produto per capita e o
seu nível de desenvolvimento humano”.
O
Índice de Percepção sobre a Corrupção de 2013, da Transparência Internacional,
coloca a Guiné Equatorial no 163º lugar no ranking dos 177 países mais corruptos
do mundo. O próprio filho do presidente, Teodorin Obiang, indicado como o seu
provável sucessor, tem um mandato de captura válido em Portugal e, em 2011, os
tribunais norte-americanos decretaram a apreensão dos bens de luxo adquiridos
(num valor superior a 70 milhões de euros).
Cada
um destes dados, ainda que ignorado pelos defensores do regime, é uma machadada
no espírito dos documentos fundacionais da CPLP. Os princípios orientadores da
organização assumem “o primado da paz, da democracia, do estado de direito, dos
direitos humanos e da justiça social” (artigo 5º dos Estatutos da CPLP). Martins
da Cruz, que certamente conhece como poucos estes documentos, esqueceu-se de
referir que estes princípios devem ser interpretados como critérios excludentes
da entrada de novos membros. É pena.
Sem
argumentos que sustentem a evolução positiva do país, restaria ao trio
Cruz-Amado-Machete o argumento da língua portuguesa. É ponto assente, e por
ninguém desmentido, que a língua portuguesa não é falada na Guiné Equatorial. E,
ao contrário do que refere Martins da Cruz, “o problema da língua portuguesa”
não ficou resolvido “com a visita, há uns meses, do Secretário de Estado da
Cooperação”. Não deixa, aliás, de ser estranho que o ex-ministro refira que
nesta visita “se deu o pontapé de saída para que o português começasse a ser
estudado ao nível liceal e universitário”. É que já o segundo governo de José
Sócrates se tinha predisposto a assinar protocolos de cooperação para o ensino
do português no país. Sinal das contradições do discurso, esta afirmação deixa a
dúvida: esses programas nunca saíram do papel ou tratava-se apenas de uma
estratégia para legitimar a proposta de entrada na CPLP? Talvez Luís Amado, à
época ministro da tutela, lhe possa soprar a resposta.
Por
último, Martins da Cruz tenta ainda argumentar que o território “já foi uma
colónia portuguesa”. O facto, que por si não justifica coisa alguma, é
igualmente absurdo: a presença portuguesa na Guiné Equatorial circunscreveu-se
fundamentalmente às ilhas de Fernando Pó e Ano Bom (e, como o próprio reconhece,
terminou com o Tratado de Madrid, em 1753). Assim, fica apenas uma vaga
referência à lusofonia como marca de um sentimento pós-colonial mal disfarçado –
sentimento esse que Miguel Vale de Almeida em boa hora classificou como “complexo colonial
português”.
Se é
certo que a Guiné Equatorial não respeita os direitos humanos e não é um país de
língua portuguesa, o que move, afinal, os defensores da sua entrada na CPLP?
Serão várias as motivações, dependendo dos interesses nos recursos de um dos
maiores produtores de petróleo e gás do continente africano. O Jorge Costa, num
artigo publicado neste espaço, refere a relação entre o
capital guinéu-equatoriano e o BANIF. Soube-se entretanto que Luís Amado, que
passou de ministro para chairman deste banco, foi convidado para ser
vice-presidente da Cimeira de Díli – na qual será decidida a entrada da Guiné
Equatorial da CPLP. Certo é que, no caso destes três responsáveis políticos, que
passaram pelos vários governos, a expressão “negócios estrangeiros” está longe
de estar desadequada.
Publicado por João Curvêlo
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