9.12.11

Retrospectativa da África em 2011

Este período histórico em que nasceu o Sudão do Sul e em que três países árabes do Norte de África perderam os seus dirigentes de longa data merece bem uma reflexão, numa revista que tão apropriadamente se debruça sobre os problemas do além-mar, sobre as situações existentes fora da Europa. A fome imensa que atormenta as populações de uma série de Estados e as convulsões que se registam noutros dominaram a actualidade africana ao longo do ano que ora se aproxima do fim; mais um ano em que o continente ainda não conseguiu ultrapassar aquele atraso de desenvolvimento que desde há muitas décadas nele verificamos. Quer seja pelas sequelas da colonização a que há um século se encontrava sujeito, por parte dos europeus, quer seja por outros e múltiplos factores que não é fácil analisar no simples espaço de duas ou três páginas de uma qualquer publicação.
Digamos apenas que se colocou talvez demasiada esperança no alastrar a outras terras da dita Primavera Árabe que principiou nas ruas tunisinas e egípcias; para depois falarmos quase que esquematicamente de uma dúzia de casos ocorridos ao longo de 2011, a mero título exemplificativo; uma vez que por cada situação abordada há sempre cinco ou seis que ficam por mencionar. Temos bem a consciência das nossas limitações, quando desejamos passar em revista um determinado período da História.
Gostaríamos de acreditar que a África é o continente do século XXI e que os factores de optimismo existem; mas por vezes é difícil. Dizem-nos que os conflitos armados estão a diminuir e que os africanos tomam o destino nas suas próprias mãos, mas isso é muitas vezes mais a linguagem de políticos bem intencionados do que a percepção geral da maioria das pessoas.
Na prática, há velhas cobiças que renascem; e outras que aparecem, do Leste e do Ocidente, em relação à África, mãe da Humanidade, que nela nasceu há cerca de 200.000 anos. África que em 2050 contará com mais de um quinto da população mundial em idade de trabalhar.
Da Tunísia ao Egipto
Depois de afastado no mês de Janeiro o Presidente tunisino Ben Ali, realizaram-se em Outubro as eleições para uma Assembleia Constituinte, ganhas pelo partido islamista Ennadha. Um dos prémios Sakharov deste ano foi atribuído pelo Parlamento Europeu, a título póstumo, a Mohamed Bouazizi, que se imolou pelo fogo no dia 17 de Dezembro de 2010 em Sidi Bouzid, e morreu duas semanas mais tarde, num gesto que desencadeou o vasto movimento popular que levou à queda do ditador que sucedera a Habib Burguiba e à sua fuga para a Arábia Saudita.
Entretanto, a forma trágica como morreu em Outubro o coronel Muammar Khadafi e como o seu cadáver foi exibido manchou o que poderia ter sido a alvorada de um novo tempo, com muitas promessas de democratização. Depois, a notícia de que a Líbiase iria reger pela sharia, "a lei islâmica ideal", também não ajudou muito quem estava à espera de um Estado que seguisse padrões culturais mais próximos dos europeus, mais de acordo com os valores dominantes na França e no Reino Unido. Mas só o ano de 2012 é que irá dizer como é que se irá desenvolver o novo sistema político, que tão desejado foi pelos países da NATO, sem os quais nunca teria havido mudança de regime.
O que se teme é que, com dirigentes mais dóceis, empresas das Américas, da Europa e da Ásia possam procurar tirar maior proveito das enormes reservas petrolíferas líbias, que são as maiores de todo o continente africano. Isto num país sem coesão étnica, pois que se a norte tem árabes e berberes arabizados, com bolsas exclusivamente berberes, a sul tem tébus nómadas e semi-nómadas e a ocidente tuaregues. Um país que é constituído por três territórios bem distintos: a Tripolitânia, a Cirenaica e Fezzan.
Quanto ao Egipto, o Conselho Supremo das Forças Armadas, que substituiu o Presidente Hosni Mubarak, não tem conseguido impedir alguns actos de violência que são cometidos por agentes policiais, de modo que a esperança numa existência mais decente continua adiada.
Na África Ocidental
Depois de alguns meses de grande impasse, o Presidente eleito da Costa do Marfim, Alassane Ouattara, conseguiu tomar posse, enquanto o seu antecessor, Laurent Gbagbo era, detido, ficando a aguardar julgamento. Ouattara é um economista liberal, antigo quadro superior do FMI, e conta com toda a simpatia do Presidente francês Nicolas Sarkozy, enquanto Gbagbo é um historiador socialista bem visto em círculos evangélicos norte-americanos. Estes últimos temem sobretudo o facto de Ouattara ser proveniente de uma família muçulmana, radicada desde há muito na zona de fronteira da Costa do Marfim com o Burkina Faso.
Por outro lado, em Julho, alguns militares da República da Guiné atacaram em Conacri a residência particular do Presidente Alpha Condé, que fora eleito em Novembro de 2010, depois de décadas à frente da oposição. Foram detidas 38 pessoas, na sequência desse atentado contra um político escolhido de forma livre e credível, mas que é diabético e tem dificuldade em andar sem assistência.
Condé está a tentar retirar o país de um ciclo brutal de violência e de submissão aos interesses do narcotráfico internacional, bem patentes tanto no seu território como no da vizinha Guiné-Bissau, que continua a ser um dos países menos desenvolvidos do mundo, sempre no temor de novos derramamentos de sangue.
África Austral
Herdeiro do velho reino do Zimbabwe e do Monomotapa, que do século XI ao XVII ia do curso médio do Zambeze até à sua foz, entre as actuais cidades de Quelimane e Beira, o país que existe desde 1980 no território que chegou a chamar-se Rodésia continua a ser dirigido desde essa altura por Robert Gabriel Mugabe, que em vez de Presidente da República mais se comporta como um antigo tirano. O cobre, o carvão, o ouro, o manganés e as pedras preciosas permitem perpetuar-se no poder, apesar de ter perdido as eleições de 2008, de cujos resultados fez tábua rasa, manietando o verdadeiro vencedor, Morgan Tsvangirai, com um lugar de primeiro-ministro com um espaço de manobra cada vez mais reduzido.
A clarificação do que se está a passar em solo zimbabweano deveria ser um dos nossos desejos para o próximo Natal, para que não se arrastem por mais tempo sistemas como os do Zimbabwe, da Guiné Equatorial ou da Eritreia, que são tudo menos democráticos.
Enquanto isso, imediatamente a norte, e quase sem o mundo dar por isso, Michael Chilufya Sata, da Frente Patriótica, passou a ser no dia 23 de Setembro Presidente da República da Zâmbia, tendo como vice-presidente Guy Scott, na sequência de eleições que lhe deram um mandato de cinco anos, com 43,3 por cento dos votos expressos, face aos 36,2 por cento do seu antecessor, Rupiah Banda. Este último só esteve três anos no poder, mas aceitou muito bem a derrota nas urnas, ao contrário do que acontecera na Costa do Marfim com Laurent Gbagbo. Sata destacara-se por ter denunciado a forma agressiva como a China está a entrar na África e a falta de respeito pelos trabalhadores em muitas das empresas chinesas instaladas no continente africano.
Do Sudão ao Quénia
A forma suave como o Sudão do Sul, em grande parte cristão, se conseguiu separar de Cartum foi um bom augúrio para os que acreditam na inevitabilidade de novas fronteiras africanas, mais adequadas a um continente cuja superfície é bem superior ao conjunto dos Estados Unidos, da Europa Ocidental, da China e da Índia. No fim de Junho, o Conselho de Segurança das Nações Unidas criou a Força de Segurança Interina para a região fronteiriça desmilitarizada de Abyei, de modo a garantir a segurança nessas terras ricas em petróleo que existem entre os dois Sudões. A UNISFA foi dotada de cerca de 4.000 militares e de 50 polícias.
O Presidente Omar al-Bashir, procurado em vão pelo Tribunal Penal Internacional, foi em visita oficial à China, assinar um acordo de cooperação económica e tecnológica, bem como contrair dois empréstimos e estabelecer uma parceria para a exploração petrolífera (sempre ela, a pairar sobre o quotidiano de povos que sofrem fome e epidemias).
No mês de Julho, a FAO, a União Africana, o Programa Alimentar Mundial e outras instituições procuraram soluções para a crise alimentar desencadeada pela seca, os conflitos armados e outros males que afectam a Etiópia, o Quénia, a Somália, os territórios sudaneses e o Uganda. Dezenas de milhares de pessoas têm vindo a morrer e pelo menos 12 milhões encontram-se em situação de grande vulnerabilidade.
Já em finais de Outubro, do outro lado da África, a parte ocidental, soube-se que um milhão de pessoas estão em risco de fome no Níger e 700.000 na Mauritânia, países situados na área do Sahel, imediatamente a sul do Sara; e que entre si têm o Mali, que também não estará isento das sequências trágicas de uma seca prolongada.
A insegurança alimentar, se bem que disseminada, encontra-se particularmente em níveis de extrema urgência nas terras do Corno de África, tendo a fome sido declarada no Sul da Somália, um país que há mais de 20 anos não sabe o que é uma administração centralizada, antes constituindo uma autêntica manta de retalhos, formada por uma série de poderes. Um quarto dos 7,5 milhões de somalis são pessoas deslocadas, 50 por cento do gado chega a morrer e os preços dos cereais básicos atingem níveis recorde, o que leva a situações de catástrofe, nas proximidades de Mogadíscio, uma capital que só o é no papel.
O acesso das instituições humanitárias é muito limitado em cerca de metade do território nacional, devido à existência de milícias fundamentalistas. Como a Al Haraka al Shababaab, contra a qual o Exército do Quénia se aventurou na segunda quinzena de Outubro, na primeira campanha que desde há 44 anos efectua além-fronteiras. É sabido que a partir de Nairobi, capital queniana, os Estados Unidos e o Reino Unido dirigem grandes operações regionais de combate ao terrorismo.
Washington decidiu neste último trimestre do ano enviar para o interior da África alguns conselheiros militares, de modo a ajudarem o Uganda e outros países nas suas imediações a neutralizarem de uma vez por todas esse horroroso flagelo que é o dito Exército de Resistência do Senhor (LRS), de Joseph Konny, figura sinistra procurada pelo Tribunal Penal Internacional. Ao longo de um quarto de século, Kony tem vindo a aterrorizar populações não só do seu próprio território como, também, do Sudão do Sul e do Nordeste da República Democrática do Congo.
Revista Além-Mar n.609 Dezembro 2011

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