4.4.13

Bissau: pela pena de José Ramos-Horta

Depois de 12 dias de uma verdadeira maratona de viagens e reuniões – Abuja (Nigéria), Yamoussukra (Costa do Marfim), Dakar (Senegal), Genebra e Mt Pellerin (Suíça), Bruxelas (Bélgica) e Lisboa (Portugal) – regressei a Bissau, no Sábado, dia 9 de Março. Ja estou de volta ha duas semanas, mergulhei logo de novo na realidade da minha missao. Fui escrevendo estas linhas, roubando tempo aqui e acola. E desta vez decidi escrever na lingua de Fernando Pessoa embora o poeta deve e estar a dar voltas no caixao ao saber que estou a invocar o seu nome. E hoje, Domingo, decidi explorar a cidade de Bissau, sem dizer nada ao Hilário, um argentino muito simpático, um dos seguranças da ONU, que fala bem o crioulo. Ele vai ficar bravo quando souber que sai de casa esta manha, a pé, sem o ter alertado. Além disso eu tinha prometido telefonar caso decidisse sair. Eu nem alertei com tempo os quatro Timorenses que estão comigo pois nao queria que eles por sua vez alertassem o Hilário. Alias, desde que os politicos-Cardeais la do Vaticano elegeram um Argentino para Papa, o Hilario ficou muito, muito mais babado. Deixou de ver o futebol para ver o Papa Argentino. Eu apostei e rezei por um Africano ou Asiatico. Esta manha decidi caminhar, explorar o bairro perto de onde vivo sem incomodar o chauffeur da ONU que tem direito a um Domingo de repouso como Deus determinou – Trabalha-se seis dias e reserva-se o sétimo para descanso. Se Deus, o Todo Poderoso que criou o Mundo, ficou cansado ao sexto dia e decidiu tirar ferias o chauffeur da ONU, o Argentino, os Portugueses e Ganenses que velam pela minha segurança também tem direito a repouso. Tinha eu 7 anos de idade, na Missao Católica de Soibada, quando a minha inocência e mente inquisidora me custaram uma bofetada do Pe. Januário. Perguntei ao bom padre açoriano para me explicar melhor como e que o Santo Deus Todo Poderoso nao criou o Mundo num so dia? E mais: mas Deus também se cansa como nos? Ainda por cima Ele so tinha trabalhado seis dias e meteu ferias! Nos, crianças tínhamos que trabalhar nove meses em Soibada, nao so estudando mas também limpando a horta de milho, cavar mandioca e apanhar lenha para a missão. E so meses depois tínhamos ferias! Deus so trabalhou seis dias e meteu ferias! Nao achei isso justo. O Pe. Januário, normalmente muito simpático, deu-me dois estalos e vi mesmo estrelas! E ameacou-me com o Inferno! E para me livrar do Inferno receitou-me logo um terco e tres atos de contrição. E para garantir mesmo minha segurança, dobrei a receita, como de resto eu fazia sempre antes de dormir; dobrava sempre as orações recomendadas pelo padre. Sentia-me mais seguro caso morresse essa noite! Nunca mais me atrevi a fazer perguntas mesmo quando a curiosidade, as perguntas e duvidas eram muitas. Claro esta manha nao sai completamente sozinho. O Iso e o Cap. Francisco que estão na mesma vivenda que eu me acompanharam. Mas nenhum Timorense que me acompanha desde Timor-Leste esta armado. Eu dizia a eles que na GB quando ha probemas entram a funcionar bazukas e morteiros; as pistoletas da nossa gloriosa PNTL nao iriam meter medo aos homens do Gen. Indjai e aos alegados baroes da droga. Confio sempre mais no Anjo da Guarda destacado por Deus para olhar por mim. O Florisberto, Isolino, Ismael Abo e Cap. Francisco sao otimos elementos, muito disciplinados, dedicados, ja conhecem o bairro e fizeram muitas amizades. A Dona Filomena tambem esta aqui comigo. Procurou emprego no MNEC em 2003 quando eu era Ministro. Ela vinha muito chorosa e ofereceu-se para fazer limpeza. Esta comigo desde essa data, muito trabalhadora, timida, educada. A primeira paragem que fiz foi no Hospital Simao Mendes, a uns 10 minutos a pé da casa. Hesitei entrar porque pensei que algum chefe do hospital poderia ficar zangadíssimo com um estranho a passear pelos corredores do hospital sem ser convidado. Mas decidi arriscar e subi para o primeiro piso. Tinha visitado esse hospital em 2003 e lembro que na altura ja estava muito degradado e agora esta mais maltratado ainda. Primeiro observei o edifício por fora que parece ter uma estrutura sólida, do antigamente, do tempo portugues. Naquela época parecia que havia melhores construtores e mais gente honesta…em Portugal e pelo mundo fora. Um cheiro forte de “xixi” me acolheu mal chego ao primeiro piso. Vi o chão sujo, paredes amareladas, do tempo, humidade, chuva e poeira. Espreitei para dentro dos quartos. Neste domingo de manha o hospital parecia estar calmo. Nao vi gente de bata branca, médicos ou enfermeiros em lado nenhum. Claro que deviam estar em outros lugares do hospital a ver seus pacientes. Medicos Cubanos e nacionais trabalham ali em condicoes extremamente precarias. Ha mais de 30 medicos Cubanos na GB comparados com os 200 que estao em TL. Mas aqui estes Medicos, autenticos missionarios, trabalham e vivem em condicoes extremamente precarias. Pergunto: se Medicins Sans Frontieres, UNICEF e Mother Teresa receberam o Premio Nobel de Paz porque e que a Brigada Medica Cubana nao deveria receber?? A Brigada existe ha mais de 40 anos e ja salvaram dezenas de milhares de vidas em mais de 100 paises! Francamente o nosso hospital Nacional Guido Valaderes (HNGV), e muito mais moderno, funcional, limpo. Fui visitante muito frequente no HNGV por isso digo que o nosso esta muito, muito melhor, com uns 50 medicos, muito limpo, com bom equipamento e funcionamento. Nao quer dizer que HNGV funciona em perfeição, longe disso! Mas comparativamente com o Hospital Simao Mendes de GB, HNGV passa o teste! Claro, pergunto sempre: mas porque ninguém, algum amigo, Brasil ou Portugal, ofereceu a reabilitação completa do hospital e equipa-lo? Ja la vão 40 anos desde a independência deste pais! Claro, nao se pode exigir tudo de Portugal que ja muito tem feito embora nem sempre sabe fazer bem. Os Portugueses sao gente muito generosa. Foram escorraçados das colónias em 1974-75 mas nao guardaram rancor e nao viraram as costas. Apesar de que Portugal nao e uma Alemanha rica, nunca regateou ajuda solidaria as suas ex-colónias. E os colonizados de seculos, raptados e acorrentados em navios-escravos rumo ao Brasil também nao guardam rancor dos seculos de colonização. O africano realmente tem um coração enorme. Confesso, a minha visita nao programada ao hospital nao durou sequer 20′. Sai e continuamos o passeio. Pelo caminho alguns Bissau-Guineenses criaram-me a ilusão de que eu estava em Dili pois muita gente me me cumprimentava com aquele sorriso limpo do Bissau-Guineense, sincero, inocente. Um pequeno ajuntamento se fez ali a uns metros do hospital quando alguém me saudou; parei e houve apertos de mão e mais gente se aproximou. Desejaram-me “boas vindas” a sua terra. So queriam que me sentisse “bem-vindo” na sua casa. Continuei a caminhada, apreciando as casas da época colonial, a maioria delas degradadas, nao habitáveis, outras habitáveis. Fez-me pensar que se houvesse dinheiro para restaurar todas as casas da época colonial, Bissau poderia ser um bom destino turístico. Chegamos perto do porto de Bissau. Ali apresentaram-se algumas vendedoras de camarão, peixe e ostras. Os camarões eram enormes, tentadores. Comprei também alguma banana e papaia mas o meu interesse estava no camarao! Comprei o suficiente para durar semanas, comer até enjoar! Nao sei quanto paguei. Mas mais barato que em Dili onde eu era sempre vitima dos vendedores pé descalço, pois por ser eu, “Presidente dos Pobres”, tinha sempre que pagar mais, muito mais. Ah em Timor-Leste nao temos camarão assim. A nao ser numa lagoa em Natarbora. No nosso patriotismo provinciano o Timorense que vai para terra estrangeira diz sempre que o que temos e sempre melhor! Lembrei-me de um Timorense, exilado em Moçambique nas decadas de 60-90, pelo seu envolvimento no motim anti-Portugal de 1959. Para la foi deportado pela PIDE e por la ficou. Creio que a PIDE se esqueceu dele mas o pobre irmão Timorense nao tinha meios para regressar a sua terra bendita no outro lado do Indico. O seu ganha-pão era um pequeno negocio de venda de carvão de cozinha. E declarava solenemente que o carvão de TL era muito melhor que o de Moçambique. Segundo esse exilado que se fixou em Terras Mocambicanas tudo que era Timorense era sempre “mais” que o Moçambicano. Uma vez, alguém brincou com ele e disse: “Ah mas o Moçambicano e mais preguiçoso que o Timorense”. Fiel aos seus, respondeu muito orgulhosamente: “Nao! Os Timorenses sao mais preguiçosos!” Logo a seguir deu conta de que este “mais” nao abonava os Timorenses e esclareceu: “Ah nao nao nao. O Moçambicano e mais preguiçoso”. Outro patriota que conheci foi o Presidente Fradique de Menezes, de Sao Tomé e Príncipe, pais-miniatura, de ilhas paradisíacas, segundo dizem os visitantes. Fradique era homem de negocios bem sucedido, poliglota, charmoso e com grande sentido de humor. Super-patriota, visitando TL quando eu era Ministro de Negócios Estrangeiros, dizia que as bananas, laranjas, cafe, peixe, de STP eram muito melhores e bem maiores que os de TL. Nao havia nada que STP nao tivesse que nao fosse maior e melhor! Sentados os dois num restaurante a beira mar em Dili, Fradique de Menezes dizia como o mar de STP era mais azul e a areia mais fina! Feitas as compras O Cap. Francisco meteu-se num taxi e regressou a casa para refrigerar os camarões. Continuei o passeio com o Iso. Ali perto do porto vi um senhor europeu, de porte pequeno, cabelos brancos, ar simples, que a certa distancia me observava, hesitando se devia ou nao abordar-me. Achei-o com ar simpatico e cumprimentei-o. Nascido na GB, considera-se Guineense e passa o ano entre Portugal e GB. Vem a GB quando em Portugal começa a arrefecer e aqui passa alguns meses do ano. Pedi seu contato e prometi convida-lo quando eu decido saborear os camarões. Entretanto, perdi o seu contato. Pena. Retomei a caminhada pelas ruas esburacadas, de terra vermelha, com pouca limpeza, sempre com algum cheiro desagradável. Vi uma casa de cabeleireiro, tomei nota para daqui a um mês quando precisar. Passamos em frente a uma discoteca e o Iso disse que ele e o Loro já vieram a esse local; disse ele, o lugar era muito simpático, tranquilo, sem desordem, como em Dili, disse ele onde havia sempre pancadaria. Nunca vou a discotecas, nem em TL. Nos anos 70 ou 80 eu cheguei de ir uma ou outra vez a algumas discotecas bem famosas da epoca como o Studio 54. Mas nos ultimos 10-20 anos raramente falto a uma opera em Sydney, Berlim ou Nova Iorque. Numa ida a Viena ha dois anos a Sandra Pires, cantora de opera e pop Timorense, que fez carreira na cidade de Strauss levou-me a uma opera. Mas o jet-leg venceu e tive que abandonar a Sandra Pires ao intervalo. Ela nao deve ter ficado muito impressionado. Em Lisboa, a julgar pelo que ouvi em encontros que tive na semana passada, a situação de direitos humanos é “tenebrosa”, o medo se instalou, há violações frequentes, sistemáticas, tortura. E este pais é o unico “Narco-Estado” do Mundo. Mas a agencia onusina UNODC, sediada em Viena e com um pequeno escritório regional em Dakar, progenitora do termo “Narco-Estado” e da diabolizacao da Guine-Bissau, nao conseguiu convencer-me de que todos os agentes do Estado estão directamente implicados no narco-trafico. O problema existe em muitos paises da África como em quase toda a Ásia, América Latina, em maior ou menor dimensão. Nao existe um cartel originario deste prqueno pais e o consumo da droga aqui ainda e muito baixo. Quando falei com um diplomata ocidental baseado em Dakar e conhecedor de toda a região, ele nao validou as alegações de UNODC e disse que o consumo da droga na GB aumentou “dramaticamente” porque havia “cinco consumidores e agora aumentou para 10; isto representa 100% de aumento mas nao deixam de ser apenas 10 pessoas”. A Guine-Bissau nao produz droga e o consumo e baixo. Ha sim grupos que funcionam como correio e pelo trabalho recebem umas migalhas e já ficam muito contentes. Individuos de outras nacionalidades – Colombianos, Bolivianos, Peruanos, Libaneses, Marroquinos e Nigerians – os profissionais do negocio. Face a eles, o Bissau-Guineense e um amador que se contenta com migalhas mas que fica com a fama!
 O maior problema da GB e a pesca ilegal em que sobressaem os Europeus. A rapina das riquezas marinhas dos povos da costa ocidental africana faz-se com total impunidade mas os Europeus nao falam muito deste flagelo porque os salteadores sao grupos europeus. Dentro de dias escreverei mais. Mas em Ingles. Qualquer dia ja escrevo em crioulo. Rezo por todos, pela vossa saude. Rezei muito pela Ligia, atacada pelo cancro em tantas frentes! Mas falei muito a serio com Deus e ela esta a recuperar bem! O Jose Alberto tambem foi atacado pelo cancro. Tambem rezei muito, falei a serio com Deus, e as ultimas noticias apontam para primeiros sinais de melhoria. Jose Ramos-Horta

Um comentário:

F. Santos - Memórias disse...

Reduzir o tráfico de droga na Guiné Bissau, com diz José Ramos Horta, “A Guiné-Bissau não produz droga e o consumo é baixo. Há sim grupos que funcionam como correio e pelo trabalho recebem umas migalhas e já ficam muito contentes” não é prestar um bom serviço ao País, e, vindo do Representante do Secretário-Geral da ONU, configura o branqueamento deste flagelo, que afeta todas as estruturas do Estado, quando deveria ser este Organismo a combatê-lo.
É claro que na Guiné não há consumo de droga, em cartéis organizados, mas são os cartéis que a partir do exterior, governam, e, fazem passar pela Guiné Bissau, toneladas de droga de várias origens e para vários destinos.