3.8.14

EUA confessam-se torturadores

Em matéria de expressão, os tempos actuais são corroídos por um paradoxo: se a fala e a escrita, no seu uso comum, tendem a ser cada vez mais “pobres” e “utilitárias”, a nível das instituições, oficiais e outras, o culto do eufemismo é tal que coisas aparentemente simples são descritas de forma ininteligível ou substituídas por frases ou vocábulos que nalguns casos pretendem apenas suavizar, ou iludir, a força ou choque da palavra certa. Não se é despedido, é-se dispensado. Não se corta nas despesas, procede-se a ajustes no orçamento. Não se morre de cancro ou sida, morre-se de doença prolongada. Etc.

Políticos e economistas, em particular, cultivam esta forma de dar um ar “tecnocrático” a tudo aquilo de que falam, mesmo que se trate das maiores banalidades. Pois bem: em contracorrente a esta vaga “moderna”, o Presidente do país mais poderoso do mundo veio a público empregar uma palavra proibida: "tortura". Proibida no que diz respeito aos Estados Unidos, naturalmente. Barack Obama já dissera, mesmo antes de ser eleito Presidente, que os EUA tinham cometido “alguns erros” após os infames atentados do 11 de Setembro, naquilo que ficou conhecido como guerra global ao terrorismo. Agora, porém, foi mais claro: “Fizemos muitas coisas que deviam ser feitas, mas torturámos algumas pessoas [disse textualmente “we tortured some folks”, expressão popular que usa noutros contextos e que, repetida neste, já lhe valeu críticas sarcásticas]. Fizemos coisas que eram contrárias aos nossos valores.” Ficou assim descodificada numa palavra simples, que toda a gente entende (e teme, e rejeita), aquilo que os serviços secretos haviam baptizado como “técnicas de interrogatório intensificadas”. Ouça-se Obama: “Quando recorremos a essas técnicas de interrogatório intensificadas, técnicas que qualquer pessoa sensata classificaria como tortura, ultrapassámos uma linha. E isso tem de ser entendido e aceite. Como país, temos de assumir essa responsabilidade, para que não voltemos a fazê-lo no futuro.” Bastaram estas palavras para que na América soasse o alarme: se é o próprio Presidente a classificar como “tortura” aquilo que até aqui tem sido citado com outros nomes, estão abertas as portas a que muitos casos possam ir a tribunal (o eufemismo tinha também um papel de dissuasor de acções judiciais). Não é que qualquer agente, militar, membro do governo, juiz ou simples cidadão tenha dúvidas em entender como tortura métodos como o da simulação de afogamento, que foram praticados, entre vários outros, por norte-americanos na prisão de Guantánamo. Simplesmente, ninguém mencionava tal palavra. Foi preciso o Presidente fazê-lo.

Muito longe da Casa Branca, um homem anunciou ontem fuzilamentos sem usar qualquer eufemismo. Foi Igor Druz, conselheiro militar dos separatistas pró-russos do Leste da Ucrânia. Se tivesse treino político, poderia ter falado na “supressão de alguns activos”. Mas disse, claramente, que foram fuzilados homens das suas próprias fileiras para “evitar o caos”. Agora, diz ele, “as tropas andam altamente disciplinadas”. Não é difícil perceber porquê. A verdade, ao menos, não cria ilusões onde não deve.   Editorial do PÚBLICO
 

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