6.12.13

O fim do Longo Caminho de Nelson Mandela

Os últimos meses que acabamos de viver foram assinalados, acima de tudo, pela agonia discreta de uma das figuras mais transcendentes que a Humanidade conheceu nos últimos séculos: o primeiro Presidente negro da República da África do Sul. A notícia que dominou as últimas 24 horas foi a da morte do ex-presidente sul-africano Nelson Mandela. Nelson Rolihlahla Mandela tinha 95 anos e o mundo esteve com ele, desde que foi hospitalizado no início de Junho, em Pretória, porque ele era o que de melhor havia no mundo, mesmo quando adoeceu gravemente e se chegou a pensar que a sua vida iria chegar ao fim antes do mês de Agosto. Mandela foi o mais importante líder moral da Humanidade desde o indiano Mahatma Gandhi, que por acaso também se encontra associado à África do Sul. Foram dois marcos enormes deste último século. E dois homens daquilo a que se convencionou chamar o Terceiro Mundo. Dois exemplos flagrantes do que a Ásia e a África têm para dar à Humanidade. Como Presidente do Congresso Nacional Africano (ANC) e líder espiritual do movimento de combate ao apartheid, Mandela contribuiu em grande escala para que a República da África do Sul passasse a ser governada a partir de 1994 por elementos da sua maioria negra, que antes dele viviam ostracizados, relegados para segundo plano dentro da própria Pátria. Em todo o Mundo, Madiba é hoje chorado como uma força extraordinária na luta pelos direitos humanos e pela igualdade racial; mas também como aquele que soube perdoar, não guardando qualquer rancor aos que o tinham perseguido e enviado longos anos para a cadeia. O Longo Caminho Foi um "Longo Caminho para a Liberdade", como muito apropriadamente se chama a sua autobiografia, editada em 1994 pela MacDonald Purnell; e coroou-o com o desapego que demonstrou pelo poder, limitando-se a um simples mandato de cinco anos, ao contrário do que fazem outros, que às vezes já com bem mais de 80 anos ainda continuam a insistir que querem ser reeleitos e permanecer nos seus cargos. Como ainda há pouco se viu, no Zimbabwe, com Robert Gabriel Mugabe. Rolihlahla, "o que arranca o ramo de uma árvore", mas também "o que agita as águas", "o perturbador", nasceu no dia 18 de Julho de 1918 em Mvezo, pequena aldeia nas margens do rio Mbashe, no distrito de Umtata, no Transkei; ou seja hoje em dia no Cabo Oriental. No ano em que nasceu terminou a II Guerra Mundial; e uma delegação do ANC foi à Conferência de Paz de Versalhes, na França, apresentar as reivindicações dos negros sul-africanos. O filho do chefe Gadla Henry Mphakanyiswa teve uma infância moldada pela tradição, pelos rituais e os tabus, num ambiente em que os pequenos negros viam os brancos quase como deuses, aqueles que decidiam do destino de toda a gente. Mas mais tarde foi-se consciencializando de que nenhum homem deveria ser Deus, fosse ele branco, negro ou amarelo. Os homens eram todos iguais e deveriam ter as mesmas oportunidades. Muito apropriadamente, Mandela tirou um curso de Direito, pois desde a adolescência o que ele queria era um mundo mais justo. E em 1952 abriu um escritório de advocacia com Oliver Tambo, o primeiro escritório de advogados negros na cidade de Joanesburgo. James Moroka, Yusuf Dado, Patrick Moloa e Robert Resha foram alguns dos seus companheiros nos primeiros anos em que sofreu as perseguições do regime do apartheid, e estiveram com ele quando em 1956 foi conduzido de Joanesburgo para Pretória, a fim de ser julgado. Mas também havia brancos que se davam com ele, como Ruth First, que em Maputo viria a ser muitos anos mais tarde directora adjunta do Centro de Estudos Africanos da Universidade Eduardo Mondlane, até ser vítima de uma carta armadilhada enviada pela polícia sul-africana. Depois, com o andar dos anos, o próprio Presidente Frederik de Klerk compreendeu que não era possível mantê-lo na cadeia por mais tempo, uma vez que ele era o símbolo de toda uma Nação; era a pedra essencial para a Verdade e a Reconciliação. A Voz de um Povo Madiba foi isso mesmo. Foi a Voz, a Verdade e a Reconciliação do povo sul-africano, que graças a ele conseguiu aguentar os primeiros 19 anos de convivência racial e igualdade de direitos muito melhor do que muita gente imaginava. Estes 19 anos decorridos desde que Nelson Mandela foi eleito Presidente da África do Sul dificilmente teriam podido decorrer de uma forma tão pacífica sem o bom senso de Madiba, que sempre soube evitar os exageros e perceber que não era apenas em duas décadas que se iria virar tudo do avesso e construir um país totalmente diferente do que ele era ainda aqui há 30 ou 40 anos. Claro que ainda há muita injustiça, muita desigualdade social, muita coisa por corrigir. Mas esse é o trabalho para as próximas gerações; para os sucessores de Thabo Mbeki e de Jacob Zuma; para os homens e mulheres que vierem a dirigir a nação do arco-íris daqui a seis, 12, 20 anos. Madiba fez o dele; e de forma exemplar. Oxalá nunca surja ninguém que se precipite e destrua o seu legado. Vai agora fazer 51 anos, em Outubro, que Mandela entrou no tribunal, para ser julgado; e uma multidão de partidários ergueu-se de súbito e começou a gritar palavras de ordem, num clima electrizante. E o réu envergava um trajo tradicional, feito de pele de leopardo, para demonstrar que era um negro que ia ser julgado por brancos. O que pretendia era tornar-se o porta-estandante do nacionalismo negro, que por essa altura já triunfara em territórios como o Ghana e a República da Guiné. Nesse julgamento foi condenado a cinco anos de cadeia, a cumprir em Pretória, envergando calções e uma camisa de caqui; mas protestou, alegando que não era nenhum miúdo para andar de calções. Perante isso, facilitaram-lhe o uso de calças, mas em troca ficou em prisão solitária, sem qualquer hipótese de contacto com os demais condenados. Robben Island Depois, em 1964, Nelson Mandela foi parar a Robben Island, onde não havia carcereiros negros nem prisioneiros brancos. Era o apartheid, em pleno, com guardas brancos e presos negros. E mais uma vez Madiba teve de insistir muito para não ter de andar de calções, como se ainda fosse um garoto, dentro da lógica racista de que os negros não era muito mais do que crianças, não tendo sequer capacidade para assumir a gestão de um país. Foram os anos mais difíceis na vida do emblemático prisioneiro, naquela ilha situada em frente à Cidade do Cabo. Mas o surpreendente é que ele não se tornou amargo com tanta dificuldade porque passou, antes tendo até aperfeiçoado a sua bondade e espírito de tolerância. Essa é a grande lição que viria a dar ao mundo, quando finalmente chegou a hora da libertação. Jorge Heitor

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