Parodiando Gabriel Garcia Márquez
“Muitos anos depois, diante do pelotão de fuzilamento, o coronel Aureliano Buendía haveria de recordar aquela tarde remota em que o pai o levou a conhecer o gelo” (in Cem Anos de Solidão).
Quando eu tinha... doze anos, uma das moradias da casa da minha mãe, no bairro de Amedalai, estava arrendada a um senhor chamado Adão.
Adão tinha dado entrada em casa umas semanas antes e eu ainda mal o conhecia quando uma tarde o vi a dirigir-se para o poço ali ao lado, de tronco nu, com apenas uma toalha enrolada à volta da cintura e um balde de apanhar água.
Eu estava sentado num banco de madeira na varanda lateral da casa, com o meu livro de matemática da sexta classe e um caderno em cima de uma cadeira, fazendo meu trabalho de casa.
Adão chegou ao poço, lançou o balde e começou a içá-lo. Poucos segundos depois levantou a cabeça e olhou para a varanda. Os nossos dois olhares cruzaram no ar e ambos sorrimos. Adão então avançou:
– Que estás a fazer?
– Exercícios de matemática
– Classe?
– Sexta
– Sabes matemática?
–Mais ou menos, respondi meio hesitante.
Surpreendentemente, Adão começou a fazer-me perguntas de álgebra, enquanto içava a corda do balde, e eu ia respondendo. Depois de umas cinco ou seis perguntas, ele olhou para mim visivelmente agradado e disse:
– Tu és bom, menino!
Imediatamente nos tornámos amigos. Adão devia ter vinte ou vinte um anos e já trabalhava. Dias depois, pediu licença à minha mãe para que passasse a sair comigo, tornando-se assim meu mentor. E foi assim que me levou pela primeira vez ao cinema.
Corria na UDIB a semana de filmes Argelinos. Pela primeira vez, embora num écrã, vi prédios altos e bonitos, fábricas com longas chaminés a turbinarem, hospitais bem equipados com médicos e enfermeiras a trabalharem com zelo, escolas com alunos alegres e bem vestidos, e autoestradas umas em cima de outras.
O filme entusiasmou-me de tal maneira que, quando saímos, enquanto ainda caminhávamos pelo passeio da UDIB, de volta para casa, eu comecei a sonhar com o dia em que a nossa terra seria como a Argélia.
Anos mais tarde, o destino fez-me conhecer prédios bem maiores, hospitais com tecnologias de ponta e universidades de classe mundial. Ainda assim, por uma magia inexplicável, o sonho Argelino continuou sempre resguardado num recanto da minha memória.
Infelizmente, como uma poderosa fantasia, o tempo encarregou-se de fazer mentir o meu sonho, ofuscando a sua beleza como as luzes de um écrã sombrio.
Muitos anos depois, diante do enorme desafio à minha frente, eu haveria de recordar aquela noite remota em que o Adão me levou a conhecer o cinema.
Bissau, 4 de Julho de 2014 Geraldo Martins, ministro guineense da Economia e Finanças
“Muitos anos depois, diante do pelotão de fuzilamento, o coronel Aureliano Buendía haveria de recordar aquela tarde remota em que o pai o levou a conhecer o gelo” (in Cem Anos de Solidão).
Quando eu tinha... doze anos, uma das moradias da casa da minha mãe, no bairro de Amedalai, estava arrendada a um senhor chamado Adão.
Adão tinha dado entrada em casa umas semanas antes e eu ainda mal o conhecia quando uma tarde o vi a dirigir-se para o poço ali ao lado, de tronco nu, com apenas uma toalha enrolada à volta da cintura e um balde de apanhar água.
Eu estava sentado num banco de madeira na varanda lateral da casa, com o meu livro de matemática da sexta classe e um caderno em cima de uma cadeira, fazendo meu trabalho de casa.
Adão chegou ao poço, lançou o balde e começou a içá-lo. Poucos segundos depois levantou a cabeça e olhou para a varanda. Os nossos dois olhares cruzaram no ar e ambos sorrimos. Adão então avançou:
– Que estás a fazer?
– Exercícios de matemática
– Classe?
– Sexta
– Sabes matemática?
–Mais ou menos, respondi meio hesitante.
Surpreendentemente, Adão começou a fazer-me perguntas de álgebra, enquanto içava a corda do balde, e eu ia respondendo. Depois de umas cinco ou seis perguntas, ele olhou para mim visivelmente agradado e disse:
– Tu és bom, menino!
Imediatamente nos tornámos amigos. Adão devia ter vinte ou vinte um anos e já trabalhava. Dias depois, pediu licença à minha mãe para que passasse a sair comigo, tornando-se assim meu mentor. E foi assim que me levou pela primeira vez ao cinema.
Corria na UDIB a semana de filmes Argelinos. Pela primeira vez, embora num écrã, vi prédios altos e bonitos, fábricas com longas chaminés a turbinarem, hospitais bem equipados com médicos e enfermeiras a trabalharem com zelo, escolas com alunos alegres e bem vestidos, e autoestradas umas em cima de outras.
O filme entusiasmou-me de tal maneira que, quando saímos, enquanto ainda caminhávamos pelo passeio da UDIB, de volta para casa, eu comecei a sonhar com o dia em que a nossa terra seria como a Argélia.
Anos mais tarde, o destino fez-me conhecer prédios bem maiores, hospitais com tecnologias de ponta e universidades de classe mundial. Ainda assim, por uma magia inexplicável, o sonho Argelino continuou sempre resguardado num recanto da minha memória.
Infelizmente, como uma poderosa fantasia, o tempo encarregou-se de fazer mentir o meu sonho, ofuscando a sua beleza como as luzes de um écrã sombrio.
Muitos anos depois, diante do enorme desafio à minha frente, eu haveria de recordar aquela noite remota em que o Adão me levou a conhecer o cinema.
Bissau, 4 de Julho de 2014 Geraldo Martins, ministro guineense da Economia e Finanças
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