Por ordem de Amílcar Cabral, foram executados sumariamente, sem qualquer julgamento, de vários guineenses (...). Um dos principais executores destas ordens foi Nino Vieira".
Isto se diz, a páginas 117/118 do roteiro "Da Guiné Portuguesa à Guiné-Bissau", de Francisco Henriques da Silva e Mário Beja Santos, ao falar das decisões tomadas em 1964 no Congresso de Cassacá. Decisões no sentido de eliminar os elementos que, no terreno, estavam a desvirtuar a linha do PAIGC.
Ou seja, o PAIGC desde sempre foi como que um ninho de víboras, no qual se verificaram ao longo dos tempos muitas traições, conforme logo em 1984 ficava a perceber quem tivesse lido "Crónica da Libertação", de Luís Cabral.
Naquele que foi o I Congresso do PAIGC, em Cassamá, não muito longe da ilha de Como, a sudoeste de Catió, "estabeleceu-se a clara subordinação das forças armadas ao poder político", coisa que infelizmente nestes últimos anos não tem vindo a ser seguida na Guiné-Bissau.
Cada comandante militar deveria actuar sempre às ordens de um comissário político; e a última palavra dependia sempre do Conselho Superior de Luta, onde "pontificavam Amílcar Cabral, Aristides Pereira e Luís Cabral", conforme se diz no roteiro lançado a semana passada em Lisboa.
Ora, nenhum dos elementos desse triunvirato era o que muitos consideravam, ou ainda hoje consideram, um autêntico filho da Guiné-Bissau, um negro de etnia fula, mandinga, beafada ou qualquer outra. Antes tinham sangue cabo-verdiano, esse sangue mestiço de que pessoas como o general António Indjai parecem não gostar muito.
Cada uma das três frentes da luta pela libertação possuía em 1964 dois chefes, um cabo-verdiano, instalado em Conacri (República da Guiné) ou em Ziguinchor (Casamansa, Senegal), e outro guineense, a combater no mato, "o que viria a criar potenciais tensões de difícil solução".
Ora aqui está, uma vez mais, o que já escrevi num texto anterior sobre este mesmo livro: sempre houve uma discrepância muito grande entre o ser-se cabo-verdiano e o ser-se de uma das diferentes etnias da Guiné-Bissau. Eram realidades completamente diferentes, as de Cabo Verde e da Guiné, tanto na década de 1950 como na de 1960.
Viriato da Cruz, enquanto secretário-geral do MPLA, chegou a aconselhar Amílcar Cabral a "desistir do Partido da unidade da Guiné e Cabo Verde", conta Luís Cabral, na sua obra editada por O Jornal e de que me ofereceu um exemplar, com simpática dedicatória. "Viriato era da opinião que devíamos transformar a organização num Partido da Guiné, mesmo que os cabo-verdianos pudessem também ser admitidos como militantes".
Amílcar opôs-se categoricamente a ceder à realidade, que demonstrava a quase impossibilidade de guineenses e cabo-verdianos fazerem parte de um sonho comum. Mas sempre houve gente infiltrada nas fileiras do PAIGC, gente que não estava de modo algum de acordo com o grupo constituído por Aristides Pereira e pelos irmãos Cabral.
Muitos combatentes pela liberdade e pela independência fizeram várias espécies de jogo duplo, tanto estando na luta como em diálogo secreto com as autoridades coloniais. É uma opinião de pessoas que desde há muito acompanham estas coisas.
Amílcar Cabral, que não era verdadeiramente um santo, mas talvez uma espécie de lírico, deu a saber aos seus homens que qualquer um que entabulasse conversações com a polícia política portuguesa seria fuzilado.
Perante a intensificação do potencial de fogo das Forças Armadas Portuguesas, Amílcar Cabral, o herói de tantos espíritos bem pensantes, o líder que já em 1964 mandara proceder a execuções, ameaçou: "Começaremos não somente a liquidar os civis portugueses nos centros urbanos, mas condenaremos e executaremos como criminosos de guerra os militares portugueses feitos prisioneiros".
Isso está escrito em 1970 no "PAIGC Actualités", citado por Francisco Henriques da Silva e Mário Beja Santos. Foi escrito dois anos e quatro meses antes de Amílcar ter sido liquidado em Conacri por combatentes do seu partido.
Depois do assassínio do engenheiro agrónomo que se entregara a uma missão praticamente impossível, a de fazer com que dois territórios muito diferentes viessem a ser governados por um mesmo partido, "centenas de quadros e militares foram interrogados em condições desumanas, como confessará mais tarde Fidélis Cabral de Almada. Um conjunto de conspiradores foi condenado à morte". Cito mais uma vez o roteiro publicado pela editora Fronteira do Caos, da cidade do Porto.
Havia pois uma clivagem cada vez maior entre os cabo-verdianos que eram os mentores da luta comum e os guineenses que no terreno a faziam. Uma clivagem que em 14 de Novembro de 1980 levou o papel "Nino" Vieira a derrubar o Presidente Luís Cabral. Uma clivagem que Aristides Pereira e Pedro Pires vieram depois a assumir, transformando o ramo cabo-verdiano da organização em Partido Africano da Independência de Cabo Verde (PAICV). Mas que até hoje os guineenses ainda não formalizaram, recusando-se terminantemente a alterar o nome do PAIGC.
Continuemos pois a reflectir sobre tudo o que nestes últimos 50/60 anos tem acontecidos nas terras guineenses. Jorge Heitor, 16 de Abril de 2014
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