18.4.14

Amílcar Cabral não era propriamento um santo

Por ordem de Amílcar Cabral, foram executados sumariamente, sem qualquer julgamento, de vários guineenses (...). Um dos principais executores destas ordens foi Nino Vieira".
Isto se diz, a páginas 117/118 do roteiro "Da Guiné Portuguesa à Guiné-Bissau", de Francisco Henriques da Silva e Mário Beja Santos, ao falar das decisões tomadas em 1964 no Congresso de Cassacá. Decisões no sentido de eliminar os elementos que, no terreno, estavam a desvirtuar a linha do PAIGC.
Ou seja, o PAIGC desde sempre foi como que um ninho de víboras, no qual se verificaram ao longo dos tempos muitas traições, conforme logo em 1984 ficava a perceber quem tivesse lido "Crónica da Libertação", de Luís Cabral.
Naquele que foi o I Congresso do PAIGC, em Cassamá, não muito longe da ilha de Como, a sudoeste de Catió, "estabeleceu-se a clara subordinação das forças armadas ao poder político", coisa que infelizmente nestes últimos anos não tem vindo a ser seguida na Guiné-Bissau.
Cada comandante militar deveria actuar sempre às ordens de um comissário político; e a última palavra dependia sempre do Conselho Superior de Luta, onde "pontificavam Amílcar Cabral, Aristides Pereira e Luís Cabral", conforme se diz no roteiro lançado a semana passada em Lisboa.
Ora, nenhum dos elementos desse triunvirato era o que muitos consideravam, ou ainda hoje consideram, um autêntico filho da Guiné-Bissau, um negro de etnia fula, mandinga, beafada ou qualquer outra. Antes tinham sangue cabo-verdiano, esse sangue mestiço de que pessoas como o general António Indjai parecem não gostar muito.
Cada uma das três frentes da luta pela libertação possuía em 1964 dois chefes, um cabo-verdiano, instalado em Conacri (República da Guiné) ou em Ziguinchor (Casamansa, Senegal), e outro guineense, a combater no mato, "o que viria a criar potenciais tensões de difícil solução".
Ora aqui está, uma vez mais, o que já escrevi num texto anterior sobre este mesmo livro: sempre houve uma discrepância muito grande entre o ser-se cabo-verdiano e o ser-se de uma das diferentes etnias da Guiné-Bissau. Eram realidades completamente diferentes, as de Cabo Verde e da Guiné, tanto na década de 1950 como na de 1960.
Viriato da Cruz, enquanto secretário-geral do MPLA, chegou a aconselhar Amílcar Cabral a "desistir do Partido da unidade da Guiné e Cabo Verde", conta Luís Cabral, na sua obra editada por O Jornal e de que me ofereceu um exemplar, com simpática dedicatória. "Viriato era da opinião que devíamos transformar a organização num Partido da Guiné, mesmo que os cabo-verdianos pudessem também ser admitidos como militantes".
Amílcar opôs-se categoricamente a ceder à realidade, que demonstrava a quase impossibilidade de guineenses e cabo-verdianos fazerem parte de um sonho comum. Mas sempre houve gente infiltrada nas fileiras do PAIGC, gente que não estava de modo algum de acordo com o grupo constituído por Aristides Pereira e pelos irmãos Cabral.
Muitos combatentes pela liberdade e pela independência fizeram várias espécies de jogo duplo, tanto estando na luta como em diálogo secreto com as autoridades coloniais. É uma opinião de pessoas que desde há muito acompanham estas coisas.
Amílcar Cabral, que não era verdadeiramente um santo, mas talvez uma espécie de lírico, deu a saber aos seus homens que qualquer um que entabulasse conversações com a polícia política portuguesa seria fuzilado.
Perante a intensificação do potencial de fogo das Forças Armadas Portuguesas, Amílcar Cabral, o herói de tantos espíritos bem pensantes, o líder que já em 1964 mandara proceder a execuções, ameaçou: "Começaremos não somente a liquidar os civis portugueses nos centros urbanos, mas condenaremos e executaremos como criminosos de guerra os militares portugueses feitos prisioneiros".
Isso está escrito em 1970 no "PAIGC Actualités", citado por Francisco Henriques da Silva e Mário Beja Santos. Foi escrito dois anos e quatro meses antes de Amílcar ter sido liquidado em Conacri por combatentes do seu partido.
Depois do assassínio do engenheiro agrónomo que se entregara a uma missão praticamente impossível, a de fazer com que dois territórios muito diferentes viessem a ser governados por um mesmo partido, "centenas de quadros e militares foram interrogados em condições desumanas, como confessará mais tarde Fidélis Cabral de Almada. Um conjunto de conspiradores foi condenado à morte". Cito mais uma vez o roteiro publicado pela editora Fronteira do Caos, da cidade do Porto.
Havia pois uma clivagem cada vez maior entre os cabo-verdianos que eram os mentores da luta comum e os guineenses que no terreno a faziam. Uma clivagem que em 14 de Novembro de 1980 levou o papel "Nino" Vieira a derrubar o Presidente Luís Cabral. Uma clivagem que Aristides Pereira e Pedro Pires vieram depois a assumir, transformando o ramo cabo-verdiano da organização em Partido Africano da Independência de Cabo Verde (PAICV). Mas que até hoje os guineenses ainda não formalizaram, recusando-se terminantemente a alterar o nome do PAIGC.
Continuemos pois a reflectir sobre tudo o que nestes últimos 50/60 anos tem acontecidos nas terras guineenses. Jorge Heitor, 16 de Abril de 2014

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