30.4.14

Um povo imbecilizado e resignado

Um povo imbecilizado e resignado, humilde e
macambúzio, fatalista e sonâmbulo, burro de
carga, besta de nora, aguentando pauladas, sacos
de vergonhas, feixes de misérias, sem uma rebelião,
um mostrar de dentes, a energia dum coice, pois que
nem já com as orelhas é capaz de sacudir as moscas;
um povo em catalepsia ambulante, não se lembrando
nem donde vem, nem onde está, nem para onde
vai; um povo, enfim, que eu adoro, porque sofre e é
bom, e guarda ainda na noite da sua inconsciência
como que um lampejo misterioso da alma nacional,
reflexo de astro em silêncio escuro de lagoa morta.
Uma burguesia, cívica e politicamente corrupta até
à medula, não discriminando já o bem do mal, sem
palavras, sem vergonha, sem carácter, havendo homens
que, honrados na vida íntima, descambam na
vida pública em pantomineiros e sevandijas, capazes
de toda a veniaga e toda a infâmia, da mentira à falsificação,
da violência ao roubo, donde provém que
na política portuguesa sucedam, entre a indiferença
geral, escândalos monstruosos, absolutamente inverosímeis
no Limoeiro.
Um poder legislativo, esfregão de cozinha do
executivo; este criado de quarto do moderador; e
este, finalmente, tornado absoluto pela abdicação
unânime do país.
A justiça ao arbítrio da política, torcendo-lhe a
vara ao ponto de fazer dela saca-rolhas.
Dois partidos sem ideias, sem planos, sem
convicções, incapazes, vivendo ambos do mesmo
utilitarismo céptico e pervertido, análogos nas palavras,
idênticos nos actos, iguais um ao outro como
duas metades do mesmo zero, e não se malgando e
fundindo, apesar disso, pela razão que alguém deu
no parlamento, de não caberem todos duma vez na
mesma sala de jantar.
* Este texto é de 1896, portanto, já lá vão 118 anos.  Guerra Junqueiro, Pátria

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