O facto de em 14 de Novembro de 1980 o primeiro-ministro guineense João Bernardo Vieira, "Nino", ter dado um golpe contra o Presidente Luís Cabral surgiu na sequência do grande ressentimento que muita gente da Guiné-Bissau tinha contra os cidadãos mestiços, nomeadamente com sangue de Cabo Verde.
De há muito que os europeus se serviam das gentes de Cabo Verde para procurar governar as problemáticas terras da Guiné; e os guineenses, de há 50 ou 70 anos, não viam isso com bons olhos, pois não queriam de forma alguma estar subordinados aos cabo-verdianos.
Em 1879 a Guiné foi separada administrativamente de Cabo Verde, como se lê no roteiro "Da Guiné Portuguesa à Guiné-Bissau", há pouco publicado por Francisco Henriques da Silva e Mário Beja Santos, na editora Fronteira do Caos.
Até à segunda metade do século XIX, "a Guiné não era mais do que um grande mercado abastecedor de escravos"; e isso ainda se reflectia em 1973 e em 1980, por mais que Amílcar Cabral tivesse querido colocar em pé de igualdade os povos da Guiné e de Cabo Verde, para que caminhassem juntos para a independência.
Cerca de 75 por cento dos funcionários coloniais da Guiné eram cabo-verdianos, como muito bem se recorda no importante roteiro agora publicado. E havia um grande ressentimento. Os guinéus não os viam como iguais; mas sim como opressores. De modo, que (pelo menos muitos deles) não poderiam encarar com bons olhos Amílcar e seu irmão Luís.
António Carreira, bastante citado por Francisco Henriques da Silva e Mário Beja Santos, lembrou "as diferenças abissais nas culturas" da Guiné e de Cabo Verde, de modo que nunca poderia dar certo o projecto de Amílcar e do PAIGC, de colocar no mesmo saco coisas tão diversas.
No ano lectivo de 1899-1900 havia na Guiné sete escolas primárias oficiais, com 303 alunos; e em Cabo Verde 42 escolas, com 4.275 alunos! Uma diferença muito substancial, que se repercute ainda nos dias de hoje, passados 114 anos.
Se há um século os cabo-verdianos já eram muito mais instruídos do que os guineenses, não admira que as primeiras décadas da independência de Cabo Verde tenham vindo a decorrer muito melhor do que as primeiras quatro décadas da independência da Guiné-Bissau.
O domínio português na Guiné sempre foi muito frágil, mormente até 1915 ou 1920. Muito mais ficção do que realidade, conforme compreende qualquer pessoa que se dê ao trabalho de ler dois ou três livros sobre o assunto. Os cinco séculos de colonização portuguesa na África foram, em grande parte, uma miragem, uma figura de retórica, uma propaganda, pois que há 230 ou há 260 anos quase que não se sentia a presença de Portugal em grande parte dos territórios da Guiné, de Angola e de Moçambique.
Esta semana, na qual ficamos a conhecer os resultados de mais umas eleições na Guiné-Bissau, depois do triste golpe de há dois anos, é bom fazer uma reflexão sobre tudo isto; mas sobretudo sobre o facto de que há 130 a Guiné não era verdadeiramente uma colónia de Portugal nem de ninguém. Apenas um conjunto de meia dúzia de praças e de presídios.
Não se pode construir uma nação a partir do nada. Não se constrói uma nação em 40 ou 50 anos, se não houver alicerces. Já o deveríamos saber. Já o teríamos vagamente pensado, talvez. Mas agora esta percepção é em mim muito mais acentuada, ao ler a importante obra de Francisco Henriques da Silva e de Mário Beja Santos, dois homens licenciados em História e que na Guiné foram alferes milicianos de infantaria, de 1968 a 1970.
Uma Guiné onde fiz duas escalas em 1963 e onde estive alguns dias precisamente em Fevereiro de 1968, aquando da visita do Presidente Américo Thomaz e do ministro do Ultramar, Silva Cunha. Uma Guiné onde mais tarde conheceria Nino Vieira, Kumba Ialá e Malam Bacai Sanhá, entre outras figuras. Uma Guiné que há 50 anos trago no coração. JH 15 de Abril de 2014
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