19.4.12

Bissau: a declaração da Marinha Grande

Tenho acompanhado de longe, mas com atenção, o processo iniciado a 12 do corrente pelas Forças Armadas do meu país, com a destituição do Presidente da República interino e do Primeiro Ministro.


Quero felicitar com veemência as Forças Armadas nacionais, pela coragem, pelo patriotismo, pela cidadania e pelo desapego ao poder.


A 01 e 02 de Março de 2009, um grupo constituído em associação criminosa assaltou o poder no nosso país, através de um sangrento golpe de Estado não assumido e que foi consumado assassinando o Chefe do Estado Maior General, o General Tagmé na Waié e o Presidente da República eleito democraticamente, João Bernardo Vieira; espancando e/ou perseguindo três antigos Primeiros Ministros e um advogado; e continuando a assassinar Deputados e manifestantes pacíficos e ordeiros, que mais não faziam do que exercer a sua cidadania democraticamente, ao abrigo da Constituição.


A corrupção, o totalitarismo, a opressão, a repressão, a prevaricação, o terrorismo de Estado cresceram rapidamente, à mesma medida que as violações da Constituição da República e das leis se tornavam o padrão do exercício de funções públicas.


A própria soberania e a independência nacionais foram postas em causa em moldes que configuram o crime de traição à pátria, conceito este que não nasceu na Guiné-Bissau e que aprendemos com a história mundial.


Agradeço, do mais profundo do meu coração e da minha alma, em nome pessoal, em nome da minha família (de que estou afastado há três anos, sem contar o falecimento da minha mãe em consequência dos crimes que cometeram contra mim) e em nome ainda de todas as vítimas desse período fatídico da nossa História recente, o acto e o processo desencadeado a 12 do corrente.

Eu próprio sou a prova viva – sobrevivi somente com a graça de Deus! – do espírito tenebroso dos que acabam de ser afastados compulsivamente das instâncias do poder público que ocupavam: tenho marcas por todo o meu corpo, desde baionetadas a coronhadas, com a consequência de costelas e dedo partidos, de lesões dentárias graves, de problemas do foro da medicina interna, da ortopedia, da cirurgia vascular, da cirurgia plástica, entre outros, de que felizmente e graças a Deus e aos bons cuidados de clínicos portugueses, estou praticamente restabelecido.


Quero também exortar as Forças Armadas nacionais a compreender a postura da Comunidade Internacional: ela é, nos tempos que correm, o CLUBE MUNDIAL DOS BONS e, enquanto tal, tem de assumir um papel desencorajador da violência nos cenários políticos.


É preciso compreender isso e não ficar magoado. Tanto mais que a História Política da humanidade, que a Comunidade Internacional conhece perfeitamente, está marcada por actos e situações revolucionárias que tiveram a intenção de melhorar os direitos e a vida das pessoas face aos poderes políticos instalados:


1. Se hoje se fala e cultiva a democracia, é na sequência histórica da Revolução Francesa de 1789, da Revolução Americana de há dois séculos, do Bill os Rights da Inglaterra, entre outros actos revolucionários honestos;


2. Se nasceu um Estado hoje chamado Portugal, foi na sequência dum acto revolucionário patriótico de Afonso Henriques, em 1140, legitimado em 1143 pela Santa Sé;


3. A República nasceu em Portugal, tal como noutros países, a partir de actos revolucionários;


4. A democracia foi implantada em Portugal a partir da Revolução dos Cravos, de 1974;


5. Os países lusófonos ascenderam à independência, todos, a partir de processos revolucionários.


O mal não está na revolução, mas no mau exercício do poder, afastando o Estado dos seus fins de juridicidade e de salvaguarda da segurança e do bem estar dos cidadãos.


Se a revolução instalar o respeito pelos valores éticos, filosóficos e políticos universalmente aceites pela Comunidade Internacional, estou certo de que a mudança qualitativa para a vida das pessoas estará objectivamente patente e não poderá ser sonegada, nem distorcida, nem ignorada.


Há três anos, quando aqueles que agora caíram se multiplicaram em graves crimes contra a democracia e os direitos humanos, eliminando fisicamente um Chefe de Estado e outras altas figuras do Estado, agindo mascarados, como criminosos, sem coragem nem dignidade nem decência de assumir publicamente os seus actos, ninguém na Comunidade Internacional fez grandes exigências!... Pelo contrário, até chegou a dizer-se que “QUEM COM FERRO FERE, COM FERRO SERÁ FERIDO”.


Sem querer reinstituir o código de Hamurabi, isto é, sem quer defender a regra do “OLHO POR OLHO, DENTE POR DENTE”, o certo é que todos os processos nacionais passaram historicamente por períodos de ditadura e totalitarismo, por mais que esses sistemas se esforçassem por se mascarar de dignos e socialmente aceites. E a queda desses sistemas aconteceu sempre através de actos revolucionários destinados a reorganizar o espectro político a partir de novos princípios e práticas conducentes ao maior respeito da pessoa humana, dos trabalhadores, do género, dos modernamente chamados direitos, liberdades e garantias da pessoa humana e dos cidadãos.


Acredito que as Forças Armadas abriram uma importante etapa no nosso processo histórico nacional, etapa que pode consolidar o Estado de Direito democrático no nosso país e, definitivamente, estabilizar politicamente o nosso Estado e fazer dele um membro digno, respeitável e responsável da Comunidade Internacional.


Com esta convicção, comecei a dormir tranquilo, como centenas de milhares de outros guineenses. Reacendeu-se a minha certeza de que não são os dirigentes que fazem a História: eles só a facilitam ou dificultam, mas quem a faz é o povo, muitas vezes em armas.


É preciso demonstrar ao mundo em geral, e à CPLP-CEDEAO-UNIÃO AFRICANA-UNIÃO EUROPEIA em particular, que somos capazes, diligentes e sérios!


É preciso demonstrar-lhes que podemos entender-nos, se o Estado que nos referencia for digno, sério, democrata e pessoa de bem, se não nos dividir em poderosos e oprimidos, em arrogantes e submissos, em abusadores e abusados, em autocratas e pés-descalços, em privilegiados e excluídos!


Obrigado! Muito obrigado às Forças Armadas da Guiné-Bissau!

Cidade da Marinha Grande, em Portugal, aos dezasseis de Abril de 2012.
Doutor Francisco José Fadul

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